quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Relação de Olavo com a Natureza

 Esta é a primeira tentativa de esboço de um motivo. Trata-se da relação do indivíduo (no caso, Olavo) com a natureza, ou seja, sua relação com o seu corpo e o mundo em geral. Certamente esse tema pode se desenvolver muito além, a intenção aqui é apenas fornecer alguns elementos úteis.

Parto da noção, aprendida com Olavo, de que o desenvolvimento de uma filosofia implica na integração e superação da biografia pessoal, isto é, o processo perfectível (imperfeito, porém sempre em processo de se perfazer mais e mais) de compreender os dados biográficos pessoais e torná-los úteis para um objetivo traçado conscientemente pelo indivíduo. Desse modo, observar os elementos negativos da biografia de um sujeito pode se tornar particularmente importantes, se feito com essa intenção, porque são justamente os mais difíceis de "integrar". Na medida em que não são integrados, esses elementos biográficos se tornam então "fantasmas" ou, mais precisamente, empecilhos da visão de mundo, reduzindo, assim, a capacidade de enxergar e interpretar os fatos; consequentemente, há aí uma perda cada vez maior na capacidade filosófica, na medida mesma em que esses elementos não se integraram.

(Para entender melhor o que são os motivos, ver ou a página "Sobre o blog" ou a Listagem dos Motivos)

Foto retirada da internet. [Provavelmente é ele na Virgínia, em uma cena do filme O Jardim das Aflições]


O que é?

A relação com a natureza é um motivo crucial. Uso natureza em sentido simples - conforme minha capacidade - de relação com o próprio corpo e com o mundo externo. Sendo assim, se as ideias de um sujeito pretendem falar sobre o mundo, sobre a sociedade, sobre leis de classificação da existência, cabe também, antes, saber qual a sua posição perante esse mesmo mundo, e como ele reagiu perante ele. Antes de sermos parte de uma família, de um grupo, de uma sociedade, com todas as suas comodidades e regras, somos, também e ao mesmo tempo, um indivíduo só perante a natureza. 

Quanto mais tecnológico o meio, isto é, preenchido de técnicas humanas, da agricultura à informática, mais ele é distante da rudeza natural. E mesmo assim a "natureza" se faz presente: cada qual um indivíduo que tenta se preservar, se protegendo dos perigos, na tentativa de se manter até quando der.

De onde pode ter vindo?

Olavo tem algumas marcas biográficas que são interessantes de serem anotadas. 
  • I- A doença na infância.
    • Não tenho os detalhes biográficos, mas em diversos momentos Olavo comenta que ficou acamado em casa por uns 7 anos. Não sei qual a doença nem como exatamente se manifestou, mas essa presença do sofrimento desde cedo parece ter relação com sua percepção de que a nossa própria capacidade de ordenar as coisas é tão pouca e tão frágil que muitas vezes não somos capazes de controlar nem o nosso próprio corpo (que dirá então de guiar o mundo na direção certa);
    • Algumas citações que mostram, inclusive - e isso é importante - sua reação ao fato:
      • "Quando eu era criança, todo mundo gozava da minha cara porque, trancado num quarto de doente por sete anos, eu era branco como um vampiro num país de gente morena. Não me lembro de algum dia ter-me ofendido seriamente com isso. Foi um grande erro. Hoje eu poderia desfrutar da maior glória que se concede a um ser humano na nossa época: ser um coitadinho. Estaria tão rico quanto o Lula." [Via Olavo de Carvalho no FB]
      • "Quando criança, mesmo doente e com febre eu ficava inventando histórias malucas que levavam as amigas da minha mãe a estourar de rir. Acho inteiramente justo o Youtube classificar os meus vídeos como 'humor'." [Via Olavo de Carvalho no FB]
  • II - um segundo problema, lá pelos 20 e poucos anos: Olavo, salvo engano, teve um problema bucal sério, além de, parece, problemas com emprego. Não tenho mais as melhores citações que caberiam aqui, algumas, inclusive, em vídeo, mas creio que foi por essa fase que tem o momento em que ele se ajoelha e fala a famosa frase: "quero aprender a entender as coisas mesmo que eu não seja capaz de contar para ninguém"
    • Foi por essa fase em que ele percebeu "o que sobra" quando tudo o mais desmorona. Ou seja, na vida comum não percebemos a quantidade de conforto que temos: se temos um corpo saudável (mesmo que imperfeito), se temos acesso a alguma comida, a algum trabalho, a alguma moradia etc., em geral tudo o que já temos, seja alguém mais simples, seja um sujeito de muitas posses, se torna o nosso parâmetro de medida, é "o mínimo necessário". É uma das ilusões da vida.
    • Alguns quotes úteis:
      • "Por que quando eu comecei a minha vida, por volta dos 20 e poucos anos eu cheguei à conclusão de que eu jamais seria ninguém. Estava tudo ferrado, eu não tinha a menor chance; então eu pensei, bom, vou começar a estudar pra ver se aprendo as coisas, mesmo que eu não consiga jamais contar para ninguém, você tá entendendo? E isso para mim era o suficiente, quer dizer, o mundo do conhecimento era o meu mundo, eu gostava, né; tanto que eu não fui publicar nada de mais importante até os quarenta e tantos anos." [Via Revista Esmeril]
  • III - um terceiro ponto seria seu interesse pela caça. Salvo engano foi na entrevista com o Lacombe citada no ponto I ele remenciona o fato de que se interessou enormemente por um livro de ficção sobre um caçador, e aquilo serviu de pilar da sua imaginação. Seu interesse por caça se prolonga até hoje. (É o famoso "pau no cu dos ursos".) Um dos pontos mais mal interpretados, visto que aqui no Brasil - até onde sei - não temos nada disso e, longe de querer investigar o assunto a sério, as pessoas pegam o afeto que têm por cachorros ou gatos, a ideia do ser humano ser maligno, e completam a história. 
    • O interesse por caça, por armas, remete diretamente à natureza e à exposição diante do perigo real que é, e sempre foi, a vida do ser humano na terra. Essa experiência, em geral nunca vivida por pessoas com condição média ou alta - eu incluso - rompe com as ilusões da vida burguesa, bonitinha, e marca na memória do sujeito a lembrança de que o mundo é uma luta constante para sobreviver. Pessoas mais humildes sabem disso na pele; com ou sem o confronto com uma situação mais selvagem, elas estão constantemente na situação de instabilidade perante a vida. Coisa que um funcionário público, por exemplo, não precisa conhecer. 
  • IV - um quarto ponto e que me chamou bastante atenção foi sua experiência de se perder no mato.  Acredito que tenha sido por volta dos 40 anos, quando Olavo foi em uma excursão, não lembro para quê nem sei onde, e lá ele se perdeu do grupo. Ali ele teve que sobreviver por uns 3 dias até conseguir sair e "se reencontrar com a civilização".
    • Alguns quotes úteis:
      • "A impotência gera o sonho de onipotência. Todo idealismo subjetivo — sobretudo os disfarçados, tão comuns na modernidade — reflete um desejo de fugir para um mundinho da nossa própria invenção. Não me curei disso estudando, mas ficando perdido no mato por quatro dias. NADA ali era o que eu pensava." [Via fanpage oficial]
      • "Pegue um ideólogo e jogue-o no meio do mato, sozinho, entre lobos e ursos. Quero ver quanto tempo dura a ideologia dele." [Via Olavo de Carvalho no Facebook]

Exemplos de manifestação do motivo

  • Gostar de morar no mato
    • Salvo engano é no filme O Jardim das Aflições em que ele fala sobre gostar do local em que escolheu pra morar na Virgínia por ser menos "civilizado" e mais "natureza. A razão disso é que quanto mais próximo da natureza selvagem, mais fácil é manter a lembrança da condição humana de mortalidade, luta constante por sobrevivência e dos próprios confortos, que são, antes, bênçãos, e qualquer coisa menos que isso não é demérito nem razão de reclamar  
  • Fugir do emprego público e da establidade dada por fora
    • Acredito que em parte seja, implicitamente, a causa da escolha por jornalismo como profissão, e mais explicitamente a recusa da aposentadoria, de um cargo público, dentre outas coisas, manifestadas com frequência no facebook 
  • "As ideias dos náufagos"
    • Consiste na diferença entre adquirir conhecimentos pelo puro gosto ou obrigação e adquirir conhecimentos ou transformar os já existentes em matéria útil para julgar sua ação no mundo. É transformá-los em orientação: "o que devo fazer", "como devo fazer", por exemplo.
    • "Ortega y Gasset dizia que as únicas idéias que valem são as idéias dos náufragos: na hora em que um sujeito está se afogando, agarrado a uma tora de madeira para não morrer, as coisas nas quais ele ainda acredita nesse momento são sérias para ele; o resto é brincadeira, superficialidade. Nós temos de buscar na filosofia essa mesma seriedade total, porque é ela que vai nos dar o critério do certo e do errado, do verdadeiro e do falso. Fora disso, se a sua própria investigação da verdade não é verdadeira, nenhuma conclusão a que você chegue significará nada. Se você quer apenas alcançar certas conclusões que sejam socialmente válidas, que sejam aprovadas por tais ou quais grupos, então não é filosofia que você quer. A filosofia é essencialmente uma busca pessoal na qual você mesmo vai ter de descobrir os seus critérios de certeza. Hoje em dia se fala muito de pensamento crítico, de “pensar por si mesmo”, mas eu nunca vi em uma universidade brasileira um sujeito que pensasse por si mesmo." (Transcrição da aula 1 do COF)
    • "Na hora em que o sujeito está se afogando e se agarra a uma tábua para não ser engolido pelas águas, quantas das idéias e crenças dele sobrevivem nesse momento? Algumas sobrevivem, decerto, mas a maioria não, e só uma fração muito pequena do que teve importância em outros momentos se conservará viva e atuante nesse hora. Se eu pudesse recomendar a vocês uma experiência que é particularmente educativa, nesse sentido, seria a experiência do risco de morte. Eu mesmo passei por isso muitas vezes na minha vida, e sei que isso é uma excelente peneira das suas idéias e interesses. Quase tudo aquilo que parecia importante dois minutos antes cessa de ter importância na mesma hora — mas nem tudo se perde, tem alguma coisa que sobra." (Transcrição da aula 4 do COF)
    • "A par do problema de como estudar existe a pergunta do que realmente lhe interessa. Para isso não há fórmula, mas quando eu dei o exercício do necrológio foi para colocar as pessoas para começar a pensar no que realmente lhes interessa e no que lhes tem valor. Há um lado da escolha dos objetos e da identificação da motivação interior. As duas coisas devem casar, de uma maneira ou de outra. É importante que cada passo nos seus estudos seja um passo na formação do seu caráter. Você está abrindo mais uma janela, criando mais um personagem imaginário, abrindo mais alternativas, ampliando o número de perspectivas pelas quais você encara o mundo. Você está se construindo, de certo modo, como ser humano, como consciência. O verdadeiro autoconhecimento consiste na capacidade de abrir estas coisas sem parar, e não em conseguir se descrever como: eu sou assim ou assado. Eu sei lá como é que eu sou, e pouco me interessa!"  (Transcrição da aula 8 do COF em resposta a um aluno que pergunta sobre a ideia dos náufragos)
  • A consciência da mortalidade (e da imortalidade da alma)
    • Sei que não li ainda alguns dos escritos mais relevantes no tema, então não posso colocar as melhores citações. Mas a primeira parte da ideia é praticamente deduzível das anteriores. A segunda parte consiste na meditação acerca do "o que sobra", como enunciado nas citações anteriores. Esse "algo", me parece, é o núcleo da personalidade e, portanto, da sinceridade, perante a Onsiciência. Ele é o "eu", em volta do qual está a mente, a memória, o corpo, a sociedade, o mundo e a História.
    • A consciência da mortalidade é a tentativa de lembrar da pequenez do que somos e da nossa capacidade, sobretudo perante o grande caos que é a natureza perante nós.
    • A única citação que tenho facilmente acessível é esta:
  • "Ideologia = merda" (tal como parodiado no Contra os Acadêmicos e cia.)
    • Aqui também não tenho muito a oferecer, mas é a noção do contraste entre qualquer tentativa de explicação para um fenômeno e a imensidão inabarcável do fenômeno em si. Essa noção, por sua vez, se expandiu para a questão das ciências, parciais, em contraste com a poesia e a filosofia, que tentam mostrar em palavras e descrever a essência dos fenômenos, respectivamente
    • Os quotes do item IV são úteis aqui também. Além deles, eu citaria também:
      • "Hoje entendo que, quando um jovem acredita que acredita numa idéia, está apenas embevecido com a perfeição do mimetismo. Muitas décadas decorrem antes de você perceber a diferença entre impregnar-se de um personagem e acreditar em alguma coisa. Tive a sorte de estudar o método Stanislavski com o Eugênio Kusnet e ter desde cedo uma vaga intuição de que, ao defender uma opinião, estava apenas fazendo teatro. Mas só entendi mesmo a diferença muitos anos mais tarde. Espero que meus alunos a entendam mais cedo." (Via fanpage do facebook)
  • A noção de filosofia 
    • Presente, por exemplo, na epígrafe do livro "O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser Um Idiota": "Se você não é capaz de tirar de um livro consequências válidas para sua orientação moral no mundo, você não está pronto para ler este livro." Esta frase remete diretamente à noção de filosofia e, portanto, a das ideias dos náufragos
    • A noção de filosofia do Olavo, portanto, engloba as ideias anteriores. É o que ele implica ao dizer "unidade da consciência na unidade do conhecimento e vice-versa". Como Julian Marias na sua História da Filosofia revela essa ambiguidade da filosofia entre uma busca por orientação no mundo - como, por exemplo, associada a imagem de filósofo ao sujeito estoico, desapegado do mundo -,  e um corpo de conhecimentos específicos. Olavo juntou essas duas coisas: os corpos de conhecimentos específicos que constituem a filosofia, pela própria matéria tratada, são também resultado de - e resultante em- visões de mundo e, portanto, em maneiras de lidar com a vida real.
      • Não tenho citações boas à mão para aprofundarem exemplo, mas é quase que onipresente no trabalho do Olavo, visto que seus artigos, na verdade, seu trabalho em qualquer nível (das notas em tom popular do facebook aos livros com forma mais erudita), tenta abrir no leitor a possibilidade de perceber essa tensão entre o conhecimento e a vida, ou, em última análise, entre a consciência e a vida, a consciência e a natureza.
    • Todo o conhecimento não integrado desse modo se torna apenas acessório, ou, imagino (não domino bem o termo) "acidente". Isto é, o grande desafio é tornar os conhecimentos nossa "essência": não só algo que foi posto na nossa memória, mas algo a partir do qual moldamos nosso comportamento, isto é, nós nos mudamos, pela nossa própria escolha, a partir da compreensão que vamos adquirindo de como é o mundo (e nós mesmos). Fora disso, uma boa memória pode fornecer emprego e salário, status ou conforto (como registrado diversas vezes em Machado de Assis, a exemplo da Teoria do Medalhão ou dO Espelho, ou em Lima Barreto), mas perante a morte, onde tudo isso se desfaz em pó, de que vale isso? E, ao contrário, posso perguntar então: será que há algo que valha perante a morte?

Sugestões para o treino da imaginação no motivo

  • Filme: O Náufrago, 2000
    • Filme muito útil para pensar nesse assunto. "O que você faria se estivesse naquela ilha?" A cena da dor de dente para mim foi particularmente excruciante: eu me renderia ali mesmo.
    • Outro ponto interessante é a cena em que o náufrago fica com raiva do seu destino e mija em fúria no mar. Essa é a nossa medida. Bandeira tem um poema no Ritmo Dissoluto, "Mar Bravo", em que põe esse sentimento "As minhas cóleras homicidas, / Meus velhos ódios de iconoclasta, / Quedam-se absortos diante da vasta, / Pérfida vaga que tudo arrasta, / Mar que intimidas!". Que é a raiva do homem perante o mar? A gente esquece da absurda imensidão do planeta. O que é a raiva do náufrago perante a fúria do mar? E o que é seu mijo perante a água do mar? Essa medida, que torna a cena tragicômica, é a marca da nossa existência.


  • Animê: Fullmetal Alchemist (em particular o episódio 12), 2009
    • A ideia de alquimia, compreensão e recomposição do mundo, pode facilmente ser associada à ideia de filosofia. No episódio 12 os dois protagonistas, ainda na juventude, são largados em uma ilha para sobreviver por 1 mês contando apenas com uma faca e um com o outro. A intenção da alquimista que os pôs ali foi ensinar "gravando na pele" pela experiência prática o sentido de alquimia, ou, de outro modo, do ciclo da vida e da nossa pequenez - porém grandeza pela capacidade de consciência - perante ele.


  • Quadro: As Vaidades da Vida Humana, Harmen Steenwyck (século XVII)
    • Não entendo quase nada de quadros, mas imagino que talvez tenha sido uma referência à meditação do Eclesiastes sobre o ciclo da vida e o quanto a mesma vida se torna "fútil" perante a morte. A morte é simbolizada pela caveira, e cada um dos outros elementos representa um aspecto da vida: (ênfase para a flauta, que deve representar música ou a arte em geral e o livro, o conhecimento). "Vaidades das vaidades, tudo é vaidade".
    • [Se tudo é vaidade, o que sobra? - eis a questão]


Finalizo então o primeiro motivo. Tentei montar as sequências em evolução de relevância e profundidade. Não sei se o consegui, mas o mais importante nesse trabalho dos motivos não é memorizá-los, mas, principalmente, prestar atenção em aspectos do trabalho do Olavo que talvez tenham passados despercebidos. Mais importante ainda é, vendo esses motivos, parar para pensar sobre os seus próprios: o que, dentro da sua história de vida, aparece como um tema recorrente? Quais memórias, quais situações? Quais são, em suma, os seus próprios motivos? A ideia aqui é, colocando Olavo sobre esses critérios, abrir a possibilidade de refletir no leitor, como refletiu em mim.
Não sei se serei capaz de cumprir com esse objetivo, mas tentarei ao máximo.


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