Guardadas as devidas proporções, os palavrões que uso têm a mesmíssima função das gárgulas no exterior das catedrais góticas: assustar os demônios e só deixar entrar quem vem com boa intenção. Os fariseus não passam da porta.
Este post é um rascunho. Nascida a ideia a partir da postagem anterior, "Quem está centrado no cu", a intenção aqui é reunir um pouco o material para aprofundar a intenção presente na linguagem do Olavo - em particular, no aspecto do uso de palavrões. Esse é um verdadeiro divisor de águas tanto nos que o acompanham por cima, quanto nos que o desprezam.
Já mencionei o assunto outras vezes ao falar sobre a língua literária em Olavo e no post anterior com o exemplo de leitor que só foca no cu da obra do Olavo.
I - A função para o escritor Olavo
Passei décadas criando um estilo literário que fosse a síntese do erudito e do brega. Consegui, mas, para compensar, ficou impossível de traduzir. Talvez só em romeno, língua cujos usuários têm uma tradição de humor absurdo parecida com a do Brasil.
Essa área eu não vou me prolongar porque, como disse, já foi tratada aqui. Resumindo: Olavo está tentando expressar a si mesmo, ou não negar-se (sua história de vida, seu gosto por piadas, seu estilo bonachão) em seus escritos. Mas é interessante acrescentar que Olavo mostra a relação entre escritor sério e santo (infelizmente não achei a citação) da seguinte maneira: "o escritor é sincero ao menos quando escreve; o santo, o tempo todo". É nessa chave de interpretação que ele critica Mário de Andrade em oposição, por exemplo, a Manuel Bandeira ou Villa-Lobos: porque estes dois últimos falam daquilo que conheceram e amaram antes do interesse na obra, enquanto que o Mário, paulista, se propõe a conhecer os temas em função da obra. A obra, por mais que possa ser bem feita, ganha uma marca de falsidade, de "trabalho burocrático", menos interessada em compreender e resolver do que em se mostrar. O conteúdo existencial, e, portanto, sincero, muda completamente. Algumas citações a respeito:
Hoje em dia o escritor negro ou gay que escreve sobre qualquer coisa que não sejam os interesses do seu grupo é considerado um traidor, um réprobo. Imaginem se ainda leríamos Puchkin, Machado de Assis, André Gide ou Oscar Wilde se eles só falassem de negritude ou de gayzice.
Tudo na Hilda era verdadeiro, genuíno, sincero. Era um coração que falava.
A busca da sinceridade, como também chamada pelo Olavo, da "própria voz", é reconhecida como o meio fundamental não só para a escrita, mas para se apresentar diante de Deus.
Goethe dizia que a maior força que existe é a personalidade humana. Para você ter força na atuação pública, a primeira coisa é: você tem de ser você mesmo. Você tem de ser mortalmente sincero com você mesmo e com Deus. Ser aquilo que você é, sem se orgulhar de ‘ser você mesmo’. Não, eu não me orgulho de ser eu mesmo, eu simplesmente sou. Eu não consegui ser outra coisa. Na medida que você aparece, não com uma personalidade forjada, não com uma máscara, mas com seu coração na mão — a sinceridade –, as pessoas te ouvem. Isto já era o segredo de Sócrates: Sócrates chamava o testemunho de seus ouvintes (…). Se você soubesse o número de pessoas que me escreve dizendo que eu disse o que elas estavam tentando dizer! Eu não estou aqui para dar minha opinião, estou aqui para dar a sua.
Não suporto gente que fala bonitinho. Só dou ouvidos a quem não tem medo de falar com o coração nas mãos, mesmo ao preço de parecer doido.
A busca da sinceridade implica, resumidamente, em ter o mais claro possível a sua intenção para si mesmo e expressá-la da maneira mais adequada possível conforme as necessidades do momento. Para o primeiro caso é preciso a ampliação do auto-conhecimento; para o segundo, a aquisição de possibilidades expressivas (como, para dar um exemplo mais comum, quando se aprende a paquerar para satisfazer o desejo afetivo e sexual). É que entre a real intenção e a intenção aparente que somos capazes de perceber e expressar no momento costumam haver camadas de confusão que precisam ir gradualmente sendo percebidas para aprofundar-se na própria sinceridade, em "círculos concêntricos". É aprender a captar que na paixão sexual e grosseira está a semente de um amor puríssimo, e aprender a converter uma na outra. É o tal do exame de consciência.
Gustave Flaubert, que era um ateu, e Henry Miller, que era um pornógrafo, praticavam o exame de consciência tão bem ou melhor do que qualquer católico que eu conheça.
Por sua vez, as camadas da personalidade são consequência desse processo. O escritor comum, mas sério, "trava" na camada 9 ou 10. O santo seria o que atinge o ápice da 12. No ensaio sobre o filme "O Crime de Madre Agnes" Olavo exemplifica o significado de sinceridade com uma situação extrema: "os santos podem pecar, duvidar, negar, blasfemar, até matar - mas não podem ter cisões esquizofrênicas, já que a integridade da consciência pessoal é conditio sine qua non do arrependimento, sem o qual não há santidade nem fé nem conversão." (Aqui vai além do que o que sou capaz de mostrar, exceto por analogia).
II - A função pública
"Um leitor precisa ser muito tapado para não perceber que, nos meus escritos, os palavrões expressam apenas a recusa humilde de toda solenidade fingida."
Ampliando a partir da primeira função, Olavo acaba se apresentando para nós sobretudo como um modelo dessa mesma sinceridade. Ao expressar-se na medida do possível tal como sua consciência, no máximo que ele foi capaz de compreender sobre si, genuinamente exige, ele encarna historicamente uma das possibilidades de sinceridade. A minha não será como a dele, como também não será como a sua, leitor. Eu, a exemplo, tive uma vida completamente diferente da dele, e o que no caso dele são piadas e filmes antigos, no meu caso são memes e cultura pop japonesa. Meus "motivos" também são se manifestaram do mesmo modo, e muitos sequer são os mesmos, mas eu e você somos seres humanos assim como ele então, pela mágica da analogia, a meditação sobre o seu exemplo vai revelando nossas próprias possibilidades de tomar posse dessa sinceridade, nas nossas condições pessoais: o processo é similar, por exemplo, ao macaqueamento que fazemos desde a infância da língua dos nossos pais e conhecidos, para poder falarmos sobre nossas próprias experiências com cada vez mais precisão.
Além disso, existe na sua língua a intenção de "desprezar quem despreza o espírito". Comecei, mas sem detalhar, o exemplo do Porta dos Fundos. Aqui é o lugar para aprofundar no exemplo para fins didáticos.
Desprezar o espírito no sentido que atribuo não significa "desprezar os 10 mandamentos". Significa, antes disso, desprezar, seja o que for. A comédia é sempre a ridicularização; não rimos de algo realmente sério, rimos, por exemplo, quando algo que podia ser sério se revela banal; algo que podia dar certo dá errado. Ionesco dizia que a comédia é uma forma de tragédia quando vista assim.
Desprezar o espírito significa o seguinte: Moisés desce com os 10 mandamentos - existe um texto único. Diante desse texto, de todas as interpretações possíveis, o vídeo, para ser engraçado, opta por puxar as mais baixas, atribuindo os 10 mandamentos como regras feitas por Moisés (não vou nem entrar na questão da autoria) e cuja função é apenas proteger a si mesmo. "Não matarás" - ah, é porque mataram seu primo; - Jura por Deus que é verdade que você fala com Deus? "não posso, é um dos mandamentos" - ah olha aí, então é mentira; (a mulher dele se abraçou com um outro homem por ele estar fora "amando a Deus acima de todas as coisas"), diz um dos presentes: - ah lá, daqui a pouco vai dizer que não pode cobiçar a mulher do próximo, ele responde: "mas está aqui".
Moisés foi transformado em um político brasileiro da pior qualidade. Quando se conhece minimamente o valor espiritual dos mandamentos - para continuar o exemplo -, isso passa do ridículo: se torna ultrajante. Deus manda seguir os mandamentos para "ser bem recebido em toda parte". Ora, dentre todas as interpretações possíveis, é muito fácil perceber por que matar ou trair causa problema. Matar uma pessoa atrai para si a fúria das pessoas envolvidas com ela - quanto mais próxima, maior a fúria. É uma "marca" permanente, principalmente pré-Cristo, onde a ideia de "perdoar", me parece, ainda não fazia sentido para o público mais amplo. Hoje em dia, eu mesmo presenciei uma mãe de condição humilde me falar que queria encontrar o assassino do filho dela para perdoá-lo. Isso era impensável, e mesmo para ela, que alimentou o desejo de vingança por muito tempo, visto que o assassino não fora preso. Quase do mesmo modo, a paixão para uma pessoa comprometida implica no mínimo em dividi-la, e isso terá repercussões na sua vida comum, ainda que ela não preste atenção. É o uso de palavras diferentes, é um desvio de fala, e, se descoberta a traição, os dois sujeitos que traíram atraem para si o ódio dos envolvidos; as paixões humanas, o orgulho de ser o escolhido amado, a luxúria (no caso do homem, ele perde a segurança, por exemplo, sobre o tamanho do seu membro e sua capacidade de satisfazer a parceira), a quebra de expectativas, tudo isso bate no coração do traído, e não sai, salvo o milagre do perdão. Isso eu digo para falar o mínimo, e nos mandamentos mais simples.
Isso é desprezar o espírito. É ver pelo ângulo mais banal ao invés de abrir-se à possibilidade de que aquilo diga algo mais. Pior ainda, essas ideias pegam na boca de quem já desprezava aquilo - no caso o cristianismo -, e privam o sujeito de contato mais sério com aquele material. Criam uma visão de mundo cada vez mais mesquinha, e são essas pessoas (os 20 milhões de acesso ao vídeo do Porta dos Fundos) que ao lerem Olavo fazem exatamente o mesmo procedimento, porque é o que foram ensinadas a fazer. E isso fecha as portas para o mais elevado; mas se não vemos o mais elevado nos outros, também nos fechamos para abrir em nós mesmos as possibilidades mais elevadas. É uma tragédia espiritual, que, arrebanhando alma a alma, transforma-se numa tragédia social. (Para mais exemplos, ver o artigo "como ler a bíblia"). A questão aqui não é falar contra a comédia - ainda mais porque ela tem seu efeito de alívio do sofrimento -, mas sim colocar a questão: rir, sim, mas do quê? Quando se ri do conteúdo espiritualmente mais elevado de uma população inteira, apresentando a ela como algo cotidiano, é que se está rindo de Deus em parceria com o diabo.
Porque vejam, dois parágrafos acima, o quanto eu precisei falar, o quanto precisei ter de dados só para começar a refutar a bobagem que cola como chiclete. É impossível refutar caso a caso, ainda mais porque a alma que se deixa levar por esse tipo de comédia já nutre dentro de si o desprezo pelo espírito. E é isso nela que a faz aceitar esses vídeos com uma espécie de prazer sádico, principalmente se ela tem conflito pessoal, no caso, com o cristianismo - por exemplo, teve pais desagradáveis que eram cristãos, ou conheceu um cristão arrogante que o desprezou etc..
Diante de uma situação tão absurda e de proporções alarmantes, o que sobra ao tentar argumentar e, diante de quem sequer consegue levar o conteúdo a sério pela sua própria decadência espiritual, não se conseguir nada?
"Ora, vai tomar no seu cu".
Isso bate diretamente nas emoções de amor-próprio do sujeito e de repente ele pode entrar em crise e começar a repensar o que fez de errado. Não tenho o local da citação, mas em 2014 Olavo falou muito disso, principalmente ao tocar no tema da psicopatia, como ocorreu em vários hangouts, ironicamente, convocados pelo Lobão. Quando o sujeito não aceita a argumentação por burrice e/ou arrogância, o psicopata tentaria antes seduzir a vítima e fazer entrar os dados sem que ela sequer percebesse, sem passar pelo nível consciente, sem ser interiorizado pela sinceridade, mas apenas pela memória. E ainda se passando de bonzinho. O "estilo olavette" consiste no xingamento; é uma troca: eu passo por mal perante você e o público, mas você agora vai ter que refletir por que mereceu uma lapada dessas. A invenção dos apelidos também tem o mesmo efeito, além de, pelo riso, fazer o leitor se afastar do sujeito que despreza o espírito. Dizem que há um rol de conversões - eu não acompanhei, exceto pelo "Punheteu" (Poeta Ateu) e, dizem, pelo "Rodrigo Cocô Instantâneo" (Rodrigo Constantino), este último em um "embate" que durou uns 13 anos.
O "estilo olavette" de fala, seja macaqueado ou com mais pleno domínio e adaptação a si, como o Ítalo Marsili, se espalha como essa coragem para enfrentar o público se colocando na posição de ser julgado e criticado pelo mundo, com a coragem de Sônia que Raskolnikov tanto invejou até, afinal, perceber que pode também ser forte como ela. Essa coragem, presente em sua forma mais perfeita no Imbecil Coletivo, que bagunçou a intelectualidade pó de arroz, como também as ideias pó de arroz, e que é fundamental para se chegar à sinceridade mais plena, tem, também, uma segunda intenção. Mas essa já não é mais só na questão de atuação pública, e sim na do indivíduo consigo mesmo. Aí, sim, entramos no núcleo da sinceridade.
III - A função para o leitor
É incrível como um homem como Gianotti, tão valente ao expor ideias políticas mesmo quando lhe atraíam a ira dos sumos-sacerdotes da esquerda nacional, se cubra de cautelas ao criticar um pensamento tão vulnerável como o de Richard Rorty. Explica-se, talvez, pela crônica timidez uspiana, inibição intelectual que se tornou, em versão fetichizada, a caricatura tupiniquim do "rigor" ensinado pelos primeiros mestres - franceses - fundadores da USP. [...] (É uma) compensação jungiana pela petulância ante o legado espiritual do passado. [...] torna-se muitas vezes o refúgio comunitário onde o intelecto mal dotado vai abrigar-se contra os perigos da investigação solitária - vale dizer, contra o exercício mesmo da filosofia. O verdadeiro rigor filosófico, ao contrário, é pura coragem interior, não se curva senão ante a evidência e não tem nada de temor reverencial adolescente (ou colonial) ante os prestígios acadêmicos do dia.
(continua poucos períodos depois) Nada aqui contra Gianotti, homem capaz e correto, que só peca por admirar quem não merece - ou por fingir admirar, talvez, já que o floreio bajulatório involuntariamente irônico é outra marca registrada do estilo uspiano, onde faz as vezes de polidez acadêmica.
Este tópico é quase colado com o anterior. As citações acima são notas de rodapé, acho que de 1994, do "A Nova Era e a Revolução Cultural". Elas mostram os 2 aspectos do que tomo como a função para o leitor individual: a coragem de verificar por si mesmo - mesmo contra a crença-padrão do público, até nossa - e o "estilo falso" universitário. Aqui, como também nos casos anteriores, é claro que eu me expando para além do uso de palavrões em si para decompor não só o uso de "cu", mas o contexto no qual Olavo fala. Dito isso vamos adiante, do estilo ao indivíduo.
Qual é, por dizer público, o autor de literatura mais importante de todos os tempos do Brasil? Machado de Assis. Qual é o seu assunto mais recorrente ao qual ele remete quase arrebatadamente: a maldade banal brasileira, sobretudo nascida da simples hipocrisia que evolui até causar o mal ao próximo (para alguns exemplos úteis, ver a novela O Alienista, ou os contos: O Enfermeiro, Conto Alexandrino, Causa Secreta, Teoria do Medalhão, O Espelho etc. etc.). Onde está esse tema nos nossos conteúdos, seja em escrito ou audiovisual, formal ou informal, para expandir essas revelações e elevar o nível de instrução e virtude da população para uma vida em sociedade mais saudável? Não está.
Somos um país cujo legado cultural mais amplo não durou nem 2 séculos praticamente, de 1850~1950 (grosseiramente de José de Alencar a Alberto da Cunha Melo), a partir de onde, com a ascensão cada vez mais rápida das universidades, e, portanto, do número de graduados, houve também a especialização cada vez maior e, por conseguinte, a "miopia" de que mencionou José Honório Rodrigues em "Vida e História", onde não havia mais pessoas interessadas em estudar uma situação mais ampla, por focar excessivamente - e por necessidade profissional - na sua especialidade. A maior universidade brasileira não tem nem 100 anos, e nossas faculdades não chegam a 200, mas, não obstante, por padronização estética, nos portamos como estrangeiros como se fossemos um país com o mesmo grau de histórico de esforços para absorver ideias e ampliar as possibilidades de ação. Não somos.
Consequentemente, é fácil fazer analogia com aquele velho e batido papo de "complexo de vira-lata". Repetimos ideias e estilos do exterior porque elas têm prestígio - como, aliás, foi a Semana de Arte Moderna de 1922. Mas, antes, havia ainda um esforço para adaptá-las às condições locais. Isto é, encaixar essas ideias como prolongamento cultural nosso - é, por exemplo, o Noturno da Rua da Lapa do Bandeira em relação com O Corvo de Edgar Alan Poe, é, aliás, a obra do Bandeira, que adapta as formas poéticas de todos os tipos, como o Gazal em Louvor de Hafiz (forma do Oriente Médio, salvo engano persa), o soneto e o alexandrino (levado à exaustão de possibilidades com o Bruno Tolentino), as misturas com sonoridades de Portugal (como em Baladilha Arcaica, Rimancete etc.), dentre outras, para soar o mais bonito possível na nossa língua. É Dostoiévski transfigurado em Graciliano Ramos, é Gil Vicente em Ariano Suassuna, é o choro e as músicas populares de infantis a adultas sintetizadas com as formas clássicas em Villa-Lobos. Cito aqui o que conheço, mas há muito mais. Esse esforço existiu, e por mais que se possa criticar o valor dessas obras, o fato é que não há mais, até onde vejo, quem sequer pense na possibilidade de fazer uma obra desse tipo.
Dá vontade de rir quando alguém me cita os 4 amores de C.S. Lewis (não li o livro, falo do que ouço popularmente citado o tempo todo) e desconhece a Contemplação Amorosa de Olavo, que está para este como o sofista Mênon está para Sócrates no assunto Virtude (fechado com chave de ouro no Fédon). Literalmente. É um riso amargo.
Jogamos o esforço dos nossos brasileiros fora para estar em dia com a novidade internacional, e ainda nos perguntamos por que ninguém lê nossos livros. É óbvia a resposta, mais ainda quando vemos que, como mostrado na segunda função dos palavrões, o vídeo satirizando Moisés está com 20 milhões de visualizações. Em nome da imitação do estilo de fora, para ficar "de bem" com a exigência dos pares, falsificamos nossas condições reais e fingimos que somos um país que não somos. E em nome de uma gargalhada sádica, cortamos a chance de propor um conteúdo mais elevado e útil.
Os palavrões, como a postura de coragem, entra aqui colocando o tema e o estilo do nosso povo acima do medo que nos faz querer passar uma boa e falsa imagem para o público. É o povo que adora Casos de Família e Programa do Ratinho, mas que também está a cada dia mais evangélico e busca a salvação da própria alma. Safados, mas sinceros; doidos, mas em busca de um Bem que, por falta de alguém melhor para oferecer, vai se perdendo.
Por fim, somos o país do ENEM. Num total de cerca de 8 milhões de alunos no ensino médio, e cerca de 42 milhões em preparação para chegar nesse ponto, 4 milhões fizeram o ENEM em 2012. Esse pessoal todo, na idade juvenil, é ensinado na escola que o principal argumento é o de autoridade, pois dá mais valor ao texto e, portanto, nota na prova e, com ela, "chances de sucesso" na vida. Vi gente de 16 anos citando Max Weber - como se o entendessem como um Câmara Cascudo, ou, como se fossem capazes de entender a sociedade se não sabem sequer entender um único adulto por experiência própria. Além de todos os absurdos "Enenescos" que não merecem ser mencionados.
Diante de todo esse treino, nos acostumamos mais a aceitar "os olhos dos outros" do que os nossos próprios olhos. E esse é o passo principal para cair no engodo do Porta dos Fundos e da decadência do espírito, da inteligência. Falar sem saber, só porque memorizou as frases. Buscar sempre as possibilidades mais risíveis do próximo. Esses dois hábitos se impregnam em nós e vão falseando nosso senso de verdade - que podemos ver presente, por exemplo, sempre que fazemos uma prova e, enquanto respondemos a questão, uma vozinha secundária nos relembra qual trecho fazemos colado do texto de referência, qual trecho estamos inventando, qual trecho é para adular o professor, qual é inventado etc.. O palavrão consiste numa recusa da autoridade para abrir espaço para o indivíduo averiguar os fatos para que chegue ou não à mesma conclusão, mas de uma forma sincera. Esse é um dos pontos mais frisados pelo Olavo ao falar do testemunho individual, e não é em vão.
O caso mais trágico da recusa de xingar em nome da polidez é o próprio Carpeaux. É o verso citado mil vezes por Olavo do Rimbaud, "par delicatesse j'ai perdu ma vie", por delicadeza perdi a vida. No seu ensaio que introduz o livro Ensaios Reunidos do Carpeaux, "Introdução a Um Exame de Consciência", também presente na obra "O Futuro do Pensamento Brasileiro", Olavo faz tanto uma análise estilística (belíssima, por sinal) quanto uma averiguação biográfica para mostrar a decadência de um grande homem, e, por via dele, a decadência do espírito, ao contracenar com a falsidade do meio.
Na ausência de modelos variados que encarnem a sinceridade, ela perde suas vias de expressão na nossa sociedade e se rende à obediência cega ao meio. Não é à toa que, cursando Letras Português, por tantas vezes vi professores falarem que a consciência é só reflexo do meio. É porque não há modelos que mostrem como é é a consciência que decide por si mesma e cujo critério de julgamento é cada vez mais interior e "esquisito" para esse meio por seguir regras próprias. À diferença do adolescente rebelde que busca ser diferente, que é, na verdade, uma breve imagem disso, uma vez que, na verdade, o mesmo adolescente é sujeito ao meio de referência e sua diferenciação não é sincera o bastante para que ele não se envergonhe de si mesmo quando está sozinho. Falta o exame de consciencia, o vertical.
Existe uma citação bem difundida no meio olavette, mas não sei a fonte. É o palhaço que tenta alertar de um incêndio no circo, mas todo mundo pensa que é mais uma piada e morre queimado. Essa imagem é um topus, repetido, por exemplo, em Lima Barreto através de um bêbado em "A Nova Califórnia". É o sujeito "esquisito", "doido", que consegue ver o mundo por olhos além da aparência social. Parodiada grosseiramente por Karnal, Greta Thunberg e cia., pessoas aceitas pela mídia e, portanto, pelo meio social, para não dizer os que associam doenças físicas e loucura patológica a esse estado de recusa consciente a fim de obedecer a uma ordem mais alta, tudo isso se torna apenas mais uma razão, um sintoma da necessidade dos palavrões. O incompreensível continuará incompreensível, como a "enigmática alma do Olavo" para o Mário Magalhães, a quem mantiver a alma pequena, não tendo o mínimo interesse em expandir a própria capacidade de enxergar algo além do banal.
Assim, os palavrões se tornam tanto um meio de filtrar os "intelectuais pó de arroz" que, não conhecendo o que há além do que veem nos textos, se restringem a esse mundo fechado, além de apontar quem são os verdadeiros doidos/burros no cenário público, e incentivar a coragem individual para colocar a busca da sinceridade, a verdade pessoal, acima de todas as coisas.
Portanto, ao vídeo do Porta dos Fundos, e a todos os que não querem compreender de verdade o que está acima da ordem social e que é inclusive necessário para que ela exista, se recusando insistentemente até em aceitar a existência dessa ordem superior, um gentil e sincero:
Vai tomar no cu!!
Porque vai mesmo. Não é uma ordem, é prevenção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário