Pois bem. Esta série de post está tentando decifrar um conjunto de habilidades que o Olavo pretende ensinar e que constituem a base da inteligência humana. A primeira delas é coragem.
Eu nunca tinha reparado que o Olavo, além da gozação do texto, faz uma careta na foto, provavelmente imitando o formato da boca do Dugin. (Ver foto ampla
aqui)
Citações úteis:
1) Tudo em volta induz à loucura, ao infantilismo, à exasperação imaginativa. Contra isso o estudo não basta. Tomem consciência da infecção moral e lutem, lutem, lutem pelo seu equilíbrio, pela sua maturidade, pela sua lucidez. Tenham a normalidade, a sanidade, a centralidade da psique como um ideal. Prometam a vocês mesmos ser personalidades fortes, bem estruturadas, serenas no meio da tempestade, prontas a vencer todos os obstáculos com a ajuda de Deus e de mais ninguém. Prometam SER e não apenas pedir, obter, sentir, desfrutar.
2) "O homem deve ter a coragem de ser bom quando tudo em volta o convida a ser mau." (Lipot Szondi)
3) A paciência é o começo da coragem. E é mesmo. Se você não consegue sofrer calado, sem choramingar nem amaldiçoar o destino, muito menos vai conseguir agir certo quando surgir a oportunidade.
4) A verdadeira coragem é sempre moral. Coragem é não fugir da morte, da derrota, da humilhação.
5) A coragem nasce do amor ao próximo, é só isso. Então, não se preocupe em ser corajoso, pois a coragem é um resultado, não uma causa. A causa é o amor ao próximo ou falta dele.
6) Toda covardia é um egoísmo e uma falta de amor ao próximo. Se o sujeito é covarde, é porque ele está querendo se preservar em primeiríssimo lugar, ou seja: aconteça o que acontecer — pode cair o mundo —, ele tem de sair inteiro. A pergunta é: por que você e não o seu vizinho? Lembrando a frase de Eric Voegelin: “Toda vida humana está integrada em uma hierarquia de bens”. Isto é básico. Hierarquia de bens: este bem que eu desejo não é tão valioso quanto aquele outro. Por exemplo, a vida moral começa no instante em que o bebê tem de escolher entre a posse de um objeto desejado e a amizade com o irmãozinho, não dá para ter as duas coisas ao mesmo tempo. Sempre se tem de fazer uma escolha, e nessa escolha entra uma hierarquia de bens. Nós estamos fazendo essas escolhas o tempo todo e quando fazemos a escolha errada, em geral, é porque não nos lembramos que existe uma hierarquia, que existe o mais importante e o menos importante; [que existe] a perspectiva da vida eterna ou a limitação da vida a este espaço terrestre.
7) No último livro do célebre exorcista Pe. Gabrielle Amorth, Judas Iscariotes, falando diretamente do inferno e forçado por Nossa Senhora a dizer somente a verdade ainda que a contragosto, explica uma das razões do sucesso do diabo no mundo contemporâneo:
-- Nunca as pessoas obedeceram tanto quanto hoje. A obediência está na moda.
Pensem nisso, por favor, vinte e quatro horas por dia.
8) Vivemos numa época moldada pela pergunta de Groucho Marx: "Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?"
Para que coragem?
a1) Para confrontar sua própria história sem medo das suas vergonhas e pecados
a2) Para confrontar as desgraças que lhe ocorram com aceitação
a3) Para confrontar seus próprios pré-conceitos/ideias favoritas etc.
b1) Para confrontar a cultura presente, desde que com o intuito de romper com ela em busca de uma cultura superior ao que é dado no seu meio.
b2) Isso implica, com cada vez mais peso, a coragem de enfrentar o meio alienante, as amizades, a família, o emprego, desde que se saiba, idem, com cada vez mais peso, a razão pela qual se luta
c) Aceitar o caos ilimitado do conhecimento
d) Aceitar até mesmo perder a vida no processo se for preciso
e) Suportar a tristeza do "saber o que os outros não sabem" sem se revoltar contra os outros ou contra si mesmo
f) Suportar a visão da "ausência do Bem"
O que significa isso?
1- Nos tópicos (a) (a1, a2 e a3), a parte fundamental é a meditação. Olavo faz sucessivas reflexões a respeito, desde a aula 1 do COF, colocando como exemplo Confissões de Santo Agostinho. Essa postura, que pode ser estudada, por exemplo, no livro A Consciência da Imortalidade, implica numa confiança de que, por trás de todo o conjunto aparentemente caótico de fatos que acontecem a você, alguma ordem existe. Essa ordem se sugere no momento em que você tenta narrar esses fatos, mas, sobretudo, no momento em que você próprio tenta atribuir a partir do seu próprio desejo e inclinação aquilo que você quer ver como uma ordem na sua vida, a partir da qual os fatos caóticos se tornam um apoio. É isso o que significa yo soy yo y mi circunstancia. Existe um fator inventivo na busca do sentido, mas essa invenção é ao mesmo tempo uma descoberta, na medida em que quanto mais você narra sua própria história pra si mesmo, sem medo, mais ela abre seus sentimentos e lhe sugere formas que são uma aproximação dessa forma última e fixa que é o que podemos chamar de sentido da vida.
2- Um recurso útil, sobretudo em a1, é a confrontação do fato isolado com a confiança numa ordem que encaixa esse fato em algo com sentido; isto é, "o mundo foi criado por Deus, que é Bom, então nada do que ocorre é verdadeiramente Mal, exceto em aparência momentânea". O oposto dessa posição passiva de aceitação, portanto, é a "revolta gnóstica"). O medo de assumir a própria história é um eco das vozes sociais, e nossa, que encontramos ao longo da vida. É um medo paralisante, que impede que nos assumamos como autores dos nossos atos, e possamos nos arrepender e decidir mudar, se for o caso, ou repetir o comportamento. A primeira coragem, portanto, é a mais oculta: é a do sujeito com seu próprio conhecimento, com seu "pré-conceito de si", que o prende e o impede de ser e crescer.
3- É nesse contexto que entra o necrológico, da aula 1 do COF. O necrológio é um esforço por captar um sentido de conjunto na sua vida. É a primeira vez em que paramos para tomar consciência de como gostaríamos que fosse esse conjunto, a partir do qual os fatos soltos serão reinterpretados. É evidente que você pode, no curso da vida, adquirir novas experiências e gostos e optar por uma nova forma nesse conjunto. Ainda assim, essa nova forma terá relação com a anterior: o sentido construído anteriormente foi algo que o aproximou desse novo, e é essa aproximação sucessiva da sinceridade (portanto da verdade) a qualidade real da nossa vida.
4- Sobretudo em (a3), é preciso deixar claro o que é meditação. Olavo sobrepõe 2 sentidos na palavra, que são próximos, mas ainda assim um pouquinho distintos.
O 1º, principal, é o de contar sua própria história. Isso significa o seguinte: ao longo do dia, nossa mente nos sugere memórias de atos bons ou maus que fizemos; nós reagimos a essas memórias de forma instintiva, com um aumento momentâneo na confiança ou um desgosto. Mas não é só pra isso que precisa servir a memória: esses atos involuntários podem servir de ocasião para que relembremos e aprofundemos esses momentos, para que tentemos analisá-los sob nova ótica. É também ocasião para puxar novos momentos, e assim aprofundamos nossa consciência biográfica, a matéria de base para, por exemplo, pensar numa forma de conjunto.
O 2º, de
Hugo de São Vitor, implica em rastrear a origem de uma ideia sua. Ou seja, você pode estar no banho, no ônibus, e de repente pensar num relacionamento e chegar a, ou já pensar diretamente sobre, como você se relaciona com pessoas, quais são suas expectativas. Quantas expectativas e modos de se relacionar não são emulados dos programas juvenis como
Malhação Eu mesmo, numa vez em que assisti dois episódios de novela para um estudo, já estava querendo imitar o estilo de um rapaz de se aproximar de uma garota. Idem, nas amizades - será que você criou a expectativa de
Friends, de amigos inseparáveis, de um amor ao estilo "
lobster", que termina e volta, mas que no fundo está destinado a dar certo? Ou talvez pegou dos desenhos japoneses? Os famosos que temos acesso são feitos em maioria numa forma rigorosíssima para um público de 13 a 20 anos, e tratam da vida como adolescentes procurando o seu bando a quem obedecer. Não há histórias que falem da construção de uma vida individual e uma família, mas sim a conquista de um talento para servir a um bando de referência - à guilda, à tripulação, ao time, ao laboratório, "à empresa", enfim, etc.. Todo o material que consumimos nos influencia, quer tomemos consciência disso ou não. Meditar sobre nossos modos de agir e suas possíveis fontes de um lado nos liberta, de outro nos fornece um poderoso recurso de análise literária. Ou seja, rastrear essa origem, ainda que fique imprecisa, é ganhar ao mesmo tempo a liberdade para pensar em modos diferentes de comportamento. É o mesmo recurso usado para se desaculturar, que tratarei depois.
5- Na medida em que se adquirem ideias diferentes das do meio ("saber é saber o que os outros não sabem"), você se tornará esquisito, e isso te colocará num confronto, como em (b). Olavo viveu esse confronto sozinho, mas ao mesmo tempo ele conheceu uma época em que existia ainda pessoas que o faziam - somado ao talento desenvolvido para alguma arte, são, afinal, os grandes nomes de um país, que conseguem produzir algo acima das expectativas dos demais. Não muda o fato de que ele conheceu uma solidão maior do que qualquer aluno do COF pode hoje até imaginar. A criação do Seminário, como ele mesmo disse, era em boa parte para criar um ambiente propício para que o sujeito não se sentisse só. Ele comemorava inclusive os casamentos surgidos assim. Imagine o contrário: imagine que tudo o que você tem são livros e dvds, você aprende sobre a inteligência e tudo o mais que existe de conflitos individuais, sociais, espirituais, mas não tem a internet para conversar, só tem o ambiente imediato (sua família, seus amigos, sua cidade, por exemplo). Você aguentaria uma vida toda assim?
A acusação de seita é uma imagem idiota construída no fato de que Olavo se esforçou por construir um espaço virtual onde fosse possível facilitar a vida dos alunos para conhecerem pessoas que também tinham os mesmos interesses, representados pelo próprio COF. Assim o lema das aulas iniciais do COF "Amizade é amar as mesmas coisas e odiar as mesmas coisas". Olavo queria permitir a construção de amizade não no contexto de momento, como quem faz amizade contextual com um colega de turma que logo depois se esquece, ou numa fila de banco, ou no barzinho, ou mesmo por ser vizinho, e a única ligação real existente é esse contexto, que não tem peso para a construção de uma vida com sentido e com valor efetivo. Viver só dessas amizades é "prostituir sua consciência", como Olavo diz, na medida em que você se fecha para o que poderia ser a mais, acima desse contexto, e que só você pode saber o que é pela abertura da sua própria biografia. Como o COF preparava para isso, então o ambiente em torno é perfeito para essas discussões, coisa que nunca se vê em nenhum outro tipo de grupo de estudos. E é isso o que estranha tanto quem vê de fora.
6- Não se trata em (b) de ser mal com seus amigos da "velha vida", de xingá-los etc., mas sim de tirar o foco dali. É possível que entre os amigos haja quem queira conhecer essa nova modalidade de posição existencial, e nesse caso dar-lhe apoio é inclusive um exercício de aprendizado para você. Quem não quiser, não quer. Olavo recomenda mil vezes a ausência de revolta, aprender a ser caridoso com todos (ver aqui), mas ser caridoso não é doar a grande parte da sua atenção para quem não quer aquilo que você considera o que há de mais valor na sua vida. É preciso coragem para sabe romper, e coragem para saber não odiar.
7- É também aqui que o estilo de palavrão, de xingamento, de se colocar contra o establishment, como Olavo fez no Imbecil Coletivo I e II (no II ele comprou briga pra defender o Pedro Sette Câmara, então jovem universitário perseguido) servem para nos ilustrar a coragem de defender "seus próprios olhos". Se como efeito colateral pode gerar uma arrogância extrema, facilmente despistada caso o outro tenha de fato mais conhecimento, essa postura do Olavo gerou o que de fato tanto se queria da nossa geração: gerar pessoas questionadoras. Falou-se muito isso, mas é óbvio que só se aplicava a um conjunto pequeno de coisas, fato aliás percebido na medida em que, pela expansão das coisas questionáveis, rapidamente se criou uma sucessão de conflitos no país. A coragem de enfrentar o meio vai desde esse sentido imediato de confronto, a fim de ganhar a liberdade pessoal de questionar (eu vi erros em autores grandes, e se não fosse Olavo preferiria dizer que eu estava delirando), mas é também, como no tópico 4, reconhecer as ideias que te formaram e se permitir criar novos padrões de comportamento, apostar em novas ideias, em suma, conforme o que te parecer mais justo.
8- Sobre a desaculturação. A palavra tem sentido negativo, e Olavo diz que "só um gênio ou um louco pode desaculturar a si mesmo". Desaculturação é contra o que Ariano Suassuna devotou sua vida: nós, sobretudo nordestinos, perdemos o vínculo com nossa cultura e história: imagine, por exemplo, um hare krishna, vegetariano, conversando com um idoso de cidade pequena, que conheceu o catolicismo popular e a cultura do gado. Esse rompimento foi substituído sobretudo por um círculo cultural de enlatado americano: não a verdadeira cultura americana, seja de raiz, seja de cultura erudita, mas o que tinha no meio, o pop (séries pop, música pop, espiritualidade pop etc.). A nossa época nasceu e se criou nesse enlatado, não propriamente na "cultura brasileira": é o estado atual das coisas. Só há como sair disso sendo induzido por outra pessoa; "desaculturar-se", sozinho, implicaria ter chegado à camada 8, que geralmente é de adultos, onde a meditação se torna mais ou menos normal e espontânea, e só daí perceber a raiz dos seus hábitos e tomar novas decisões de comportamento. Imagine um jovem chegando a esse ponto: ele tem que ter em si um fator de desestabilização com o meio muito forte: seja negativo (alguma loucura que o torne afastado do meio), seja positivo (genialidade).
Um exemplo de indução de desaculturação é o que acontece na universidade. Hoje o esquema geral é assim: o aluno, classe média, vem de família evangélica; recém-saído da escola, tem mais conhecimentos "chiques" do que a família, então se considera superior. Na medida em que nutre um conflito entre sua auto-imagem de superior e o que presenciou na sua família, ele deseja algo a mais. A universidade então apresenta uma nova forma de ver o mundo, onde os evangélicos são de fato ignorantes que precisam ser reeducados etc., e que eles são os diferentes. Assim o aluno rompe o vínculo com sua raiz e entra nessa nova cultura, a acadêmica, e, quanto mais ele tem sucesso lá, menos ele compreende sua raiz. O problema é que o fenômeno de desaculturação universitária acontece de forma implícita - não é uma matéria acadêmica, nem é tema de curso nenhum, quiçá Ciências Sociais, mas enquanto método, não realidade - e não leva o sujeito a uma cultura universal, mas sim à composição do quadro cultural local, que é, por sua vez, uma "cultura contemporânea".
A verdadeira desaculturação, a que gera gênios de valor universal e não acadêmicos de valor específico para aquela instituição daquela cidadezinha daquele país, implica na habilidade de atingir um estado "neutro" a partir do qual todas as culturas podem ser vistas a partir do seu próprio coração, como suas próprias. Isso inclui a sua cultura de raiz (aprender a compreender sua família) e a cultura na qual essa raiz está imersa (a nacional). Diz Olavo no artigo de 2006,
Pela restauração intelectual do Brasil:
O objetivo primeiro da educação superior é negativo e dissolvente: consiste em “desaculturar”, no sentido antropológico do termo: desfazer os laços que prendem o estudante à sua cultura de origem, às noções consagradas do “nosso tempo”, à ilusão corrente da superioridade do atual, e fazer dele um habitante de todos os tempos, de todas as culturas e civilizações. Não se pode chegar a nada sem um período de confusão e relativismo devido à ampliação ilimitada dos horizontes. Não basta saber o que pensaram Abrahão e Moisés, Confúcio e Lao-Tseu, Péricles e Sócrates, ou os monges da Era Patrística: é preciso um esforço para perceber o que eles perceberam, imaginar o que eles imaginaram, sentir o que eles sentiram. Não se preocupe em arbitrar, julgar e concluir. Em todas as idéias que resistiram ao tempo o bastante para chegar até nós há um fundo de verdade. Apegue-se a esse fundo e faça sua coleção de verdades, não se impressionando muito com as contradições aparentes ou reais. Aprenda a desejar e amar a verdade como quer que ela se apresente. Acostume-se a conviver com as contradições, já que você não terá tempo, nesta vida, para resolver senão um número insignificante delas.
Isso não existe na universidade. Não é matéria de curso nenhum. Menos ainda o é a meditação, que só pode ser feita ou por quem viu ser feita inúmeras vezes - com Olavo, no nosso caso - ou por quem já tem uma vida, atingiu a plena maturidade emocional, e começa a repensar sua história (camada 8). Olavo menciona sua experiência com teatro: foi a técnica de identificação pessoal com os dramas dos personagens que o abriu para isso. É expandir a alma, como queria Fernando Pessoa, é o
mergulho stanislavskiano do Olavo. É só nessa postura que se pode dizer que "toda história é história contemporânea" (isto é, a alma humana permite compreender todos os dramas humanos a partir da imaginação e analogia), ou ainda “Para compreender uma civilização- dizia Titus Burckhardt – é preciso amá-la, e isto só é possível graças aos valores permanentes, de validade universal, que ela implique.” (
ver mais aqui). Não existe outro meio, e isso não é exagero retórico.
Não existe!
O fato de Olavo recomendar isso mortalmente não impede que seus alunos, na pressa por terem um lugar ao sol, se fechem para inumeráveis culturas. Pior para eles, e para quem os seguir. É por essa razão que se fala do "voto de abstinência em matéria de opinião": quanto mais cedo você constrói uma imagem intelectual da qual precisa para se manter, menos você compreenderá. Eu estou aqui, eu estou compondo uma imagem sobre mim mesmo, mas, felizmente, eu sou estúpido o bastante para continuar sendo estúpido publicamente, para considerar tudo o que faço aqui "lixo" (ainda que útil), para tentar na medida do possível não guardar qualquer imagem, nem depender financeiramente disto aqui. Se assim não fizesse, estaria lascado. Essa é parte da coragem de (b2), consequência do meio social, ainda que seja de estudo e sério.
Nota de rodapé: No estado atual, e eu próprio vivi isso, algum grau de desaculturação acontece e não apenas com o enlatado americano. Hoje em dia, com a internet, temos pelo menos mais 3 enlatados disputando terreno: o japonês (bem mais desenvolvido e acessível), o coreano e o chinês. É dessa influência pop de séries, desenhos, HQs e música que surge em jovens o desejo de aprender o idioma, de absorver mais dessas culturas. Não se trata, porém, da desaculturação educativa, mas, ao contrário, do desprendimento inicial da cultura local, o que gera pessoas esquisitas, como eu próprio, os "otakus", "k-poppers" e cia., e que não sabem como coordenar seus gostos com seu meio. É, antes, o começo de um processo, não seu fim, e não temos, hoje, meios de lidar com essas pessoas, ainda que atinja uma grande fatia de jovens (para não falar no enlatado americano).
9- Já meditamos, já confrontamos o mundo, agora precisamos confrontar o caos. De
(c) a
(f) a coisa parece mais ainda com um exercício de ascese. Em
(c) é preciso procurar ativamente e aceitar a imensa quantidade de conhecimento. Há o famoso post do Olavo em que ele recomenda
60 livros por ano. O que quase ninguém prestou atenção foi nas letras miúdas abaixo: "em volta dos 60 faça 'leituras inspecionais' [pesquise por Mortimer Adler] de cem ou duzentos livros, e esteja sempre fuçando revistas especializadas de todos os assuntos". Quem fetichiza os 60 livros perde de vista a construção do panorama do saber, que é ainda mais importante, sobretudo no começo, do que a leitura propriamente dita. É essa fetichização que gera o fenômeno assinalado pelo Horácio Neiva: as pessoas ficam presas no universo olavette. Olavo se transforma num curso universitário: ao invés de te desaculturar para a cultura universal, te desacultura para ele próprio. Diz Olavo no artigo
aprendendo a escrever (citado, desgraça!, pelo próprio crítico Horácio):
O sujeito que nunca tenha lido um livro até o fim, mas que de tanto vasculhar índices e arquivos tenha adquirido uma visão sistêmica do que deve ler nos anos seguintes, já é um homem mais culto do que aquele que, de cara, tenha mergulhado na “Divina comédia” ou na “Crítica da razão pura” sem saber de onde saíram nem por que as está lendo.
Na medida em que se busque ver a quantidade de conhecimento que existe, e, até pelo confronto com Olavo, se perceba a quantidade que é necessário ter, o sujeito pode cair num estado de pânico (eu caí e caio até hoje). Quando se começa a adquirir cultura e se percebe o tamanho de um Manuel Bandeira, o tamanho de um Bruno Tolentino, do próprio Olavo, a reação natural é um tremor. De minha parte, junta-se a uma profunda tristeza quando, mesmo cursando Letras, relembro que ninguém lá me ensinou nada disso, ninguém lá
sabe de nada disso: é um misto de solidão e vontade de ajudar, que só consigo sintetizar com 3º Estudo de Chopin, Tristesse (especificamente neste vídeo,
o original foi deletado - quem viu o anime sabe o que a cena representa). A coragem se torna cada vez mais "etérea": não é mais contra algo, ao contrário, é sua confrontação com uma infinitude sem solução. Se você lesse 100 livros por 100 anos teria lido 10.000 livros, e isso não é mais um grão de poeira perto da quantidade de livros já publicados e ainda por se publicar (para mais detalhes, ver
este vídeo). Essa imensidão interminável, porém, cujo treinamento fazemos pelo
mapa da ignorância, é o campo onde existimos. É a vida real do conhecimento, e é preciso saber medir o que se teve com o que faltou ter, do contrário não há como falar com sinceridade. Fora disso, cai-se na expressão popularizada pelo Olavo "o efeito Duning-Kruger", da qual a universidade dá uma amostra: você se prende num conjunto fechado de conhecimentos e acredita que eles sintetizam o universo inteiro. É próprio do período pré-desaculturação acreditar, ainda que implicitamente, que seu vilarejo é o centro e topo do mundo, porque suas preocupações de sobrevivência estão todas ali.
10- Olavo fala sobre "consistência intelectual". Em primeiro lugar existe a coragem de perder a própria vida, que parte de uma decisão. Isso já garante uma consistência muito maior do que um "homem medíocre". Mas na medida em que se adquira ideias, meditadas, regando-as com conhecimento, adquire-se a "consistência intelectual", tal como Olavo fala no vídeo "
o que é ser um grande homem" ou ainda no "
perder as ilusões sobre esta vida". A descoberta de si para além do corpo, sentimentos e memórias, isto é, de uma unidade onde todos esses fenômenos são parte, como nas meditações propostas no
A Consciência da Imortalidade, servem para apresentar o sujeito à sua realidade última, que será aquilo que ele confrontará com mais precisão na
camada 12. Olavo quer elevar-nos até esse ponto, e usa todos os meios possíveis para isso, como ilustrarei a seguir. Algumas amostras:
III) Aulas 56 e 57 sobre a Alma imortal.
IV) O sentido da vida, desde a aula 1, e a ênfase do Olavo em popularizar
Viktor FranklV-1) Aula 10, onde ele faz o exercício de atenção ao ambiente em torno, isto é, a abertura para o que está latente na percepção.
V-1.2) Também a leitura do Presença Total, proposta na mesma aula, abre para a percepção do eu enquanto unidade perante o "Ser total".
V-2) O exercício de relaxamento da aula 32 para abrir para a percepção pura. Na p.121 do A Consciência da Imortalidade Olavo menciona que esse tipo de exercício é para afrouxar a percepção do sujeito para ele perceber-se para além do vício moderno de associar ou ao corpo ou à mente.
V-3) O começo da aula 15 ilustra essa percepção pura, pré-verbal, quando a "mente total" do sujeito conseguiu perceber um padrão nas cartas antes que a "mente racional" fosse capaz de verbalizar, uns 40 turnos antes.
V-4) Essa percepção pura, por sua vez, abre o sujeito para uma atenção reflexiva ao verbum mentis. Os prefácios da edição da Nova Aguillar à obra poética de Fernando Pessoa (Cancioneiro e Mensagem) mostram notas do poeta falando disso, que é também a raiz da impressão genuína a ser posta numa forma poética ou literária. É o pensamento mais puro que temos, ainda sem articulação verbal, e é ilustrado nas aulas 379 (+/- aos 34m40), 380 (+/- aos 39m30), 383 (+/- aos 28m), conforme tive acesso.
Há inúmeros outros exemplos, mas estes devem servir de base para ilustrar o esforço do Olavo de colocar-nos numa perspectiva supra-histórica, seja no sentido do nosso eu, seja no da história em si. É ocasião de explicar o que ocorre, conforme entendo, das camadas 8 a 12, mas fica para outro momento.
11) Tudo isso gera (e) e (f), que são sinônimos praticamente. É o lado negativo que qualquer sujeito, desde a simples desaculturação inicial até a aquisição de uma personalidade profunda e arraigada na eternidade, seja sujeito comum ou até santo, terá de enfrentar. Estar sozinho pode gerar a tentação da revolta ou da tristeza profunda, ambas demoníacas. É essa posição que Olavo descreve neste trecho, pouco conhecido:
“Várias vezes, em décadas passadas, a impossibilidade quase absoluta de infundir nas pessoas do meu círculo mais próximo um lampejo de interesse pelas coisas do espírito me levou ao mais negro desespero e até a contemplar a possibilidade do suicídio. O apego delas à mais mesquinha banalidade do dia-a-dia se erguia diante de mim não apenas como um muro impossível de saltar ou furar, mas como quatro paredes que se estreitavam progressivamente, sufocando-me.” (grifo meu)
Quem vê o Olavo risonho das aulas ou do True Outspeak não imagina essa face. Foi pressenti-la, ao conhecê-lo e pegar logo de cara o livro O Jardim das Aflições, que me deixou em pânico: como esse sujeito ria com tanto gosto, e tirava piada mesmo depois de falar de algo tão trágico e terrível?
Miguel contra o diabo.
É uma capacidade praticamente angélica, mas que Olavo não conquistou sozinho. É típico do diabo a revolta, o grito de raiva ou angústia. É típico dos anjos a serenidade, o auto-controle. Houve a sorte (Olavo considera um milagre) do Olavo de conseguir sair do Brasil nessa época; há sua família, cujo amor o impede de cair na camada 4, há o estudo de biografias de pessoas que caíram, como a do Carpeaux, que ele sintetiza no ensaio "Introdução a um exame de consciência", presentes tanto no Futuro do Pensamento Brasileiro, como nos Ensaios Reunidos do Carpeaux, volume 1. O exercício da meditação, também, e do encontro com esse "eu com unidade", o imortal, nos forçam a adquirir substância de resistência. Alguns quotes úteis:
Mesmo que um escritor não tenha a menor intenção religiosa, não escapará da máxima de Antonio Machado: ‘Converso com o homem que sempre vai comigo — quem fala só espera falar a Deus um dia —; O meu monólogo é conversa com este bom amigo. Que me ensinou o segredo da filantropia.’
Condenar-se é usurpar a função do diabo; perdoar-se, a de Deus. Não perca tempo com essas coisas. Tente apenas compreender-se e ajudar-se, e faça o mesmo com todo mundo. Creio que este é ‘el secreto de la filantropía’.
Quando me acusam de um mal que não cometi, busco sua analogia próxima ou remota com algum que cometi e sempre descubro alguma coisa útil, da qual o acusador não tem idéia próxima nem remota.
Gustave Flaubert, que era um ateu, e Henry Miller, que era um pornógrafo, praticavam o exame de consciência tão bem ou melhor do que qualquer católico que eu conheça.
A diferença de
(e) pra
(f) é entre o problema que você vai enfrentar consigo mesmo, e o problema que você vai enfrentar ao lidar com os outros. O grande desafio de buscar o Bem não é só o rompimento com seu eu antigo, com o meio, com a cultura, até contemplar uma visão cada vez mais completa e pura desse bem ("
Amar a Deus sobre todas as coisas"); é que, quanto mais você adquire, mais você vai perceber a ausência dele nas pessoas, no meio, na cultura. Ao contrário do que se pensa, isso não vai gerar revolta, nem um senso de superioridade propriamente dito, mas
a tristeza que fez Olavo contemplar o suicídio. Essa é a grande ironia da vida, e que é perceptível nos santos que não estejam em claustros: quanto mais se conhece o Bem, mais se descobre o Mal, não porque se quis conhecê-lo, nem por absolutamente nenhuma outra razão do que a ausência do Bem que se passará a perceber. Quem conheça o Mal não pode chegar a uma visão do Bem, ao contrário, só sente ódio do pouco Bem que conheça, buscando nesse bem algo de mal para se justificar o outro não ser tão bom assim. Quem procura o Bem, por outro lado, encontrará não os furos, que ele tentará reparar ou "não ver" (Olavo confia em todo mundo até que se prove o contrário, e mesmo assim ele só dá um sacode e esquece), mas sim as grandes ausências, que geram compaixão ao se perceber ao mesmo tempo o que o outro está deixando de conhecer de Bom. É essa "tristeza sagrada" a constante que move, por exemplo, o serviço educacional do Olavo. Qualquer outra visão abaixo dessa é tolice. E é nesse ponto que ele quer nos colocar.
Nos próximos posts muito desses assuntos acabarão por ser retomados, mas por outro ponto de vista. Se você não entendeu, acompanhe os demais mesmo assim. E fique à vontade para fazer perguntas.
Sobre as baboseiras que até ditos ex-alunos falam do Olavo:
Até o próximo post.
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