Como não sou estudioso aprofundado em nada, vou usar uma definição temporária do termo a que me refiro: língua literária significa, aqui, a intenção aplicada à palavra, como no escultor é a intenção aplicada ao mármore ou outra matéria-prima, e o flerte é a intenção aplicada à conquista do outro enquanto parceiro sexual (e, afinal, não é, pelo filósofo píton, a intenção das intenções?)
Como assim? Vamos lá.
O primeiro exemplo que me despertou para a questão foi um texto que me passaram do Leandro Karnal. Eu não lembro qual era o texto, mas tinha algo a ver com cultura, e era basicamente um jeito chique de chamar as pessoas "metidas a eruditas" de asnos. No texto, aliado à sua argumentação - que na verdade era bem pobre - ele citou uma imensidão de livros de várias áreas que comporiam o que a gente chama de "Grandes Livros da Literatura Ocidental" (o nosso cânone geral, tanto em História, em Literatura, em Ciências Sociais etc.). Você lia o texto dele e, como leitor-médio brasileiro, chegaria à conclusão de que é burro mesmo, e se é burro, os outros são ainda mais por se acharem inteligentes, e que, afinal, o Karnal é inteligentíssimo. De fato, eu também não li quase nenhum desses livros ainda, e apesar de não ter recebido esse efeito - que me pareceu efetivo diante das pessoas que me falaram do texto -, saí, afinal, com a impressão de que era burro mesmo, e tinha muito o que ler ainda. Certo? Bom, mas ele poderia ter escrito só a argumentação sem citar tantos textos. Pelo que me lembre, eram realmente desnecessários, exceto quando levada em conta essa intenção. Isso é um esboço da "intenção literária", mas melhoremos essa ideia.
Vamos evoluir um pouco as possibilidades. Concordam que um texto de ENEM tem uma "forma"? "Nos últimos anos temos visto acontecer....", "Concluímos que...". Do mesmo modo, a linguagem acadêmica tem um estilo, que é diferente da linguagem jurídica, que é diferente da empostação que o repórter faz na fala ao transmitir a notícia, que é diferente, afinal, da língua que você usa para falar com o crush no zap zap? E ninguém fala como Machado de Assis, certo?
Brbr
Não vou nem falar dos memes. Miseri-córdia. Mentira, vou sim.
"Mano, tu é?" ("Tu é?" É o quê, caramba?!), "Nunca nem vi", "senhora?", "eu queria estar morta", suco de laranja, e, para os mais velhos, "se eu pudesse eu matava mil". Essas frases imediatamente evocam em vocês lembranças, certo? São frases que têm um efeito cômico imediato e que a gente aplica - junto, na internet, com imagens e vídeos - nas conversas. E elas funcionam, tornam o discurso mais atrativo, mais "íntimo", porque ao usá-las, você acessou não só o código comum da língua, mas sim memórias afetivas geradas pelo "meme". Não dá para usar esse recurso ao falarmos com nossos pais, ou, pior ainda, com nossos avós. Não vou nem dizer de gente que fale outra língua que não a "língua BR" (português brasileiro). Entendem o que quero dizer? O discurso feito com memes está repleto de intenção, mesmo que seja aparentemente banal. A gente sabe distinguir quando pode e quando não pode usar, com quem pode, quem é mais provável de decodificar a mensagem corretamente etc.. Isso também é "intenção literária".
Existe, assim, a "língua-padrão", hipotética, mas cada contexto - o da redação de ENEM, o jurídico, o acadêmico, o das conversas do zap, o dos textos de Machado de Assis etc. - terá uma língua própria com seus próprios termos, estilos, permissões e impertinências etc., de modo que nunca falamos "português brasileiro", mas sim essas diversas línguas, de acordo com nossa capacidade e interesse em participar (falar e entender) do grupo. Isso não parece ser assim porque como tudo tem uma "essência-comum" (português), não percebemos no dia a dia quando mudamos de código de discurso. Mas isso ocorre, e o tempo todo.
Essa ação fica muito mais visível quando você tentar ler um texto clássico em idioma estrangeiro. Fiz meus testes com textos japoneses (eu sou otaku, então, né), e digo a vocês: é OUTRO MUNDO. A língua dos animes, dos mangás, das músicas - enfim, a língua pop - é extremamente pobre. Não vi um autor literário japonês que não fale de questões budistas o tempo todo, e precise de um imenso vocabulário, totalmente diferente do "pop" para fazer isso. É assustador, e cheio de nuâncias. É só nessa hora, por exemplo, que você entende que o conselho "pense no idioma que está aprendendo" só serve porque nunca pensamos de verdade. É impossível, por exemplo, ler uma linha que fale sobre "zankoku" - mesma pronúncia, mas escrita de um jeito significa crueldade; escrita de outro jeito, a do texto, significa "impassividade" - e, precisando usar o dicionário para entendê-la, pensar na ambiguidade do seu significado (e que tem MUITO SIGNIFICADO) no próprio idioma. É im-pos-sí-vel. Eu teria que jogar fora essas ideias, e elas têm imenso valor não só para a obra, mas em si mesmas. Não entrarei em detalhes.
Dito de outro modo: dizem para lermos pegando as palavras "por contexto", sem recorrer ao dicionário. Mas, você já experimentou fazer o contrário? Seria o caso de tomar a língua portuguesa (nossa língua materna) como língua estrangeira. Querem ver no que dá? Pois bem. Vou citar exemplos.
- Macunaíma de Mário de Andrade
- Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna
- Dois irmãos de Milton Hatoum
- o artigo "As prostitutas no dicionário", artigo do Imbecil Coletivo II do Olavo (se ele ler isso eu vou levar um supapo)
Olavo diz, em algum lugar que não recordo, algo como "levaria muitos anos para um estrangeiro dominar o português para conseguir ler meus textos". Diz ele também:
Mas a arte de resumir todo um argumento numa frase breve, de impacto brutal — que tantos me condenam como se fosse prova de não sei que sentimentos ruins — aprendi mesmo foi com três santos: S. Paulo Apóstolo, Sto. Agostinho e S. Bernardo. Tudo tem um preço. Ninguém pode imitar os santos, nem mesmo em literatura, sem escandalizar uma intelectualidade pó-de-arroz. (Ainda a arte de escrever).
Uma das coisas mais deliciosas da minha vida é ver os meus alunos aprendendo rapidamente a arte de condensar realidades complexas em frases curtas e contundentes. No dia em que o Brasil tiver cem escritores capazes de fazer isso, nosso povo nunca mais será ludibriado. ("Olavo de Carvalho no Facebook", site, 2016)
Passei décadas criando um estilo literário que fosse a síntese do erudito e do brega. Consegui, mas, para compensar, ficou impossível de traduzir. Talvez só em romeno, língua cujos usuários têm uma tradição de humor absurdo parecida com a do Brasil. ("Olavo de Carvalho no Facebook", site, 2017)
As máquinas de traduzir serão a morte da literatura, reduzindo toda a linguagem pública ao jargão administrativo e jornalístico. ("Olavo de Carvalho no Facebook", site, 2019)
Cada vez que descubro entre o português e o inglês uma expressão intraduzível, fico maravilhado com o milagre da linguagem. (idem)Vou começar pelas citações, e então retorno aos autores (e lembrem do tal do texto do Karnal que, ainda que fosse fictício, já que infelizmente esqueci o título, serve de exemplo genérico). O que é "impressão intraduzível"? Ora, zankoku, como disse acima, é uma. "Saudade" é um exemplo que muito se usa - depois explico. Mas os memes, em grande parte, por mais simples que sejam, são intraduzíveis. Ser intraduzível significa que não dá para captar todos os efeitos ao mesmo tempo. Se você diz "I've never seen that" não vai evocar o rapaz da prisão, não evoca o ritmo da fala (que é parte da graça) e, pior, o falante de inglês que leia pode até conhecer outro exemplo em mente, do país dele, que gere outro efeito, talvez até mesmo oposto ao desejado. É porque por trás da expressão estão as referências que a geraram. Não vou nem falar do recente "mano, tu é?" (= "tu é gay, é?"), porque, PELO AMOR DA LÍNGUA UNIVERSAL DE BABEL, se você chegar para qualquer ser humano e perguntar "are you?" ele vai te olhar com cara de paisagem e esperar pelo menos um adjetivo ou substantivo, QUALQUER COISA. Essa referência de fundo precisa estar sempre presente. É sempre assim.
Mas, mesmo em termos mais gerais, a palavra "coragem" do português, por exemplo, é mais intraduzível do que "saudade". Coragem tem o poder de significar duas coisas ao mesmo tempo: 1- Bravura ("você precisa de coragem para enfrentar os obstáculos"); 2- Ânimo ("eu estou sem coragem de trabalhar hoje"). E o que raios bravura tem a ver com ânimo? Alguma coisa deve ter, se a palavra diz as duas ao mesmo tempo. Resta descobrir. Eu é que não vou falar disso aqui.
Saudade é conhecida como intraduzível por causa do longo histórico afetivo com a palavra, que eu chutaria que tem a ver com o fado português. É óbvio que a expressão "estou com saudades" dá para dizer em qualquer língua. "I miss you" (sinto sua falta) ou "aitakatta" (queria te encontrar). É óbvio que dá. Mas ela não tem o peso afetivo que a palavra saudade nos trouxe com seus usos, com as músicas que falam dela, o tom melancólico do MPB, do fado etc.. Essa é a distinção real, não é só por ser um substantivo. "Ah mas é um substantivo, então..." você pode julgar o "porque" de ter surgido como substantivo, no que afetou etc. (eu não sei), mas qualquer verbo que expresse a ideia de saudade pode ser adaptado no discurso para o valor de substantivo. Então o diferencial real do termo é, de novo, esse fundo de referências que nos traz e que é intraduzível, porque não dá para ensinar MPB, fado, e tantas outras coisas na mesma hora em que fala o termo. Esse é o problema de que Olavo fala das "máquinas de traduzir". Ok?
A intenção literária a que me referi décadas acima consiste em ter consciência do idioma, dos diversos códigos, das referências de fundo e, afinal, expressar o que se quer expressar tanto no conteúdo quanto nas escolhas de escrita. Eu vou melhorar a explicação.
Todo bom autor tem uma intenção constante. Essa intenção cria de si um "personagem". Ariano Suassuna é, talvez, o "sertanejo erudito", Mário de Andrade é o "pan-brasileiro", Milton Hatoum é o "amazonense", Olavo é o "brasileiro brega-erudito". Não sei o suficiente de nenhum para fechá-los corretamente, mas para exemplo das obras é suficiente.
Percebi isso principalmente graças ao Ariano Suassuna. Você deve saber que suas peças de teatro vieram de cordéis, certo? No auto da compadecida ele pegou 3 cordéis e amarrou-os em um enredo só. O que eu me lembro e que será útil para a explicação é o "cavalo que defecava dinheiro". Atenção! Cavalo! Defecava! No auto o Suassuna faz uma passagem incrível entre um enredo e outro. Após a morte do cachorrinho Xaréu (eu rio até hoje com esse nome), João Grilo tem a ideia de vender um gato à patroa, ex-dona do cachorro, para pegar dinheiro dela. E, para introduzir a proposta do "cachorro que descome dinheiro", ele lança: "quem não tem cão caça com gato". O grande problema da língua literária é que ela requer ou a comparação com o que poderia ter sido dito ou a compreensão dos códigos, o que, afinal, dá no mesmo. O que Suassuna fez aqui foi costurar dois cordéis populares com um ditado popular; não sei qual dos dois atos veio primeiro, se elaborar a história a partir do ditado, ou se o ditado veio para complementar a história, mas o fato é que: 1- não faria sentido trocar um cachorro adorado por um cavalo; 2- "descome" enfatiza o estilo cômico e inocente da peça; 3- tudo isso amarrado com o ditado expande o sentido dele, agregando unidade à obra e valor para expandir o dito popular; 4- coitado do gato! (nem vou falar da originalidade do Suassuna).
Com menos "sacadas", mas com igual "intenção literária", é possível aprender a prestar atenção nas escolhas de cada autor. É impossível ler Macunaíma de Mário de Andrade sem um dicionário e o wikipédia do lado. Ele recheia o livro inteiro com termos indígenas, de plantas amazônicas, exóticas, além de lugares etc.. Quase na mesma proporção há na Pedra do Reino do Ariano Suassuna uma imensidão de termos minuciosos que pertencem ao vocabulário do sertanejo, do homem do sítio do interior do nordeste. "Barbicacho", "onça" são os que melhor lembro agora. Assim também Milton Hatoum pinta sua cidade de Manaus, agregando frequentemente vocabulário local - mas é diferente de Mário de Andrade porque em Hatoum esse vocabulário está no fundo, e em Mário está bem presente, e em cada página há umas 20 palavras novas. A leitura que busca "entender por contexto" implica cortar todas as especificidades de plantas, lugares, sentimentos, jeitos específicos e tomá-los pelo "geral". Uma "acuçena" se torna "planta", "coragem" se torna "bravura", outros exemplos:
Já na meninice fez coisas de sarapantar = "coisas doidonas"
Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba = "ficava no canto trepado num pau (de uma árvore)"Esse corte imenso e imediato que fazemos, muitas vezes, sem perceber, "pela pressa", rompe com todas as referências, com toda a riqueza, para não falar nas implicações das escolhas, de modo a ficarmos apenas com o tal "fio narrativo das ações". Se fazemos isso com um texto, é evidente que também devemos fazê-lo com pessoas também. Pela pressa, todas as nuâncias, sutilezas de intenção e vontades são cortadas e resumidas em uma intenção genérica, geral.
E o Olavo?
Primeiramente é preciso enfatizar que se estou falando desses assuntos é única e exclusivamente por causa do grande apoio que Olavo teve na minha formação e, portanto, por ser um dos temas que ele trata e considera de grande relevância. A língua sem que se capte as referências é uma janela com grades: uma prisão, não uma abertura para o mundo. Sendo assim, se ele apenas ajudasse a ver isso, já merecia ser citado; mas, mais que isso, ele também faz um estilo literário evidente. Nas palavras dele, "a síntese do erudito e do brega".
O primeiro choque que se pode ter com a figura Olavo de Carvalho é a diferença entre seu estilo linguístico presente no True Outspeak do estilo presente nas aulas. No True Outspeak ele fala de modo mais enérgico, com palavrões, mas é preciso prestar atenção, por exemplo, em "onde" ele os coloca. O exemplo que mais gosto é este aqui (inclusive, um dos vídeos que mais me influenciou a dar o voto de confiança ao Olavo):
Oração e autoconhecimento. Nota: esses vídeos antigos estão cada vez mais difíceis de achar. Estou ficando velho. Existem "gerações do olavismo" (as dos anos 2000, as depois do "mínimo", as depois da ascensão conservadora, as depois da eleição de Bolsonaro), e aí vão se avolumando os vídeos e materiais, e fica difícil retomar. Ô raios!
No vídeo de um lado ele está falando da "disciplina ascética da inteligência", ao mesmo tempo em que fala:
"Melou tudo, ele não vai enxergar nada" [3m17]
"Pô, será que as pessoas não entendem?" [4m19]
"ah aquilo lá é acreditar numa doutrina e ficar repetindo aquela porra por mera crença". (4m56), e prossegue: "Ora, porra. Mas isso é uma coisa de animal! Dá vontade de nem responder, [é dizer]: 'eu vou encher sua cara de porrada. Vou bater em você e não vou explicar porque tô batendo. Se não entender até amanhã vai apanhar de novo! É assim que tinha que ser!'"
Devia ter uma cota de burrice que o sujeito comprava. E aí quando gastava aquilo tinha que pagar mais. Mas como é de graça, os caras abusam, porra!
Aliás, essa última é uma sacada tão divertida quanto a de Ariano Suassuna.
Olavo está falando de questões nesse vídeo que eu já vi, por exemplo, nas meditações de Louis Lavelle, nos textos filosóficos, em grupos mais ou menos místicos como Nova Acrópole, mas a maneira como ele fala condiz com a sua intenção: misturar o brega com o erudito. Fugir do código padronizado da fala erudita, recheando de exemplos aparentemente banais, como o ditado do Suassuna, mas, ao mesmo tempo, elevando-os a um significado maior.
Os xingamentos do Olavo são sempre direcionados não às coisas elevadas, mas a quem desdenha dessas mesmas coisas, o que, afinal, fortalece o discurso sobre as coisas elevadas. É o jargão que costumo usar: "rir sim, mas rir do quê?" Quando você pega um vídeo como os do Porta dos Fundos, como este sobre os 10 mandamentos, o que está sendo visto pelo ângulo do ridículo é algo de extrema importância para muita gente. Por outro lado, Olavo faz o contra-ataque: ridicularizar o ridicularizador das coisas elevadas.
Uma das coisas que deve ter dado trabalho para o Olavo foi "escolher" esse código "popular". Sim, porque a linguagem popular passa rápido. São modismos temporários, como os memes, e que se deixam a marca em uma geração, são desconhecidos pela seguinte. Quem daqui a, talvez mesmo 10 anos, vai saber o que é "havaiana de pau", ou "Senhora?", ou "Eu queria estar morta"? Os vídeos engraçados e novas referências se proliferam aos montes, e os mais jovens sempre vão estar em contato com o mais novo, não com o antigo. Do mesmo modo é preciso escolher no estilo referências mais "constantes". O Alborghetti, por exemplo, nem eu conhecia. Se conheci foi porque virou meme moderno após Olavo. São exceções.
Vai à merda, porra! (Alborghetti, pai do personagem de TV Ratinho, considerado uma das inspirações para o estilo do Olavo)
É preciso lembrar, por exemplo, que alguns dos nomes artísticos que mais chamavam atenção eram "bocas sujas", e/ou barraqueiras (e, apesar de não admitirem isso, a coisa não mudou muito). São eles, por exemplo, Pedro de Lara, Dercy Gonçalves, Ratinho. E recentemente temos Gretchen (gente, ela pode ser meme, mas ela é famosa por putaria), Inês Brasil (idem), e Ratinho continua, além de programas populares como Casos de Família etc.. Nem vou falar da imensa popularidade do brega funk etc.. Baixaria pura, a cobra fuma adoidada por aqui.
Mas Olavo conseguiu criar uma síntese da linguagem que para hoje é o nosso "tiozão" com o erudito, tornando esses assuntos elevados mais acessíveis, e mantendo o humor para quem quer que não esteja muito infiltrado pelo "humor anti-sagrado" que representei pelo Porta dos Fundos.
Por fim, "as prostitutas no dicionário" do Imbecil Coletivo II, para uma demonstração escrita - e, portanto, mais refinada. Mas antes, logo no título do livro, já encontramos 3 referências, puxadas para o humor "anti-anti-sagrado": o imbecil coletivo (intelectual coletivo de Gramsci, parece (não li)), "a vaca foi para o brejo" (ditado popular reconhecido até hoje), "filhos da PUC" (palavrões parece que são mais permanentes numa linguagem do que quaisquer outras pilhérias). Não vou me demorar em detalhar as referências, mas quem quer que experimente, vai achar no mínimo muito instrutivo.
O artigo em questão trata sobre uma deputada - não interessa quem - que quis forçar o dicionário a mudar a expressão "mulher pública" que tem sinônimo popular de "prostituta" para que tenha o valor equivalente ao "homem público", elogioso. Sem entrar em detalhes, num simples artigo (4 páginas de letra relativamente grande na minha edição) Olavo aponta, dentre outras coisas:
- Uma contradição abissal entre a esquerda antiga (ou a do plano do discurso) e a esquerda moderna (ou a real);
- A ascensão de um autoritarismo;
- Um autoritarismo não só físico, mas que põe em jogo a questão das consciências individuais
- A disputa entre a cultura do povo e a cultura jurídica;
- A disputa entre a busca da verdade e a "verdade pragmática" (de momento, conveniente a fins políticos);
- Questões linguísticas e metalinguísticas sobre o uso da língua portuguesa.
Tudo isso com e através de piadas feita em torno de um simples fato banal cotidiano que, aos olhos leigos, passaria no máximo como uma excentricidade. A piada-mor foi a sacada:
"Ao passo que os homens empregam sem rebuços as duas sílabas do meio da palavra 'deputado' (ou 'deputada', pois aqui não se discrimina ninguém"Gente, linguisticamente isso é brilhante. Já pensaram no tanto de coisa que é preciso um estrangeiro saber para decifrar isso? (desde algo de separação silábica, gírias etc.). A pessoa em questão que fez a proposta era uma deputada, e o Olavo não só juntou tudo isso numa sacada tão brilhante ou, eu diria, até mais, que a que Ariano Suassuna teve que fazer para montar a transição das peças do Auto da Compadecida, como também usou da notícia banal para revelar através dela suas posturas filosóficas. Ou seja, não só a intenção linguística se fez presente, como a intenção filosófica, os dois personagens sendo um só e mantendo o viés pedagógico.
E isto, afinal, é o que "sobra" do texto ao longo das épocas, apesar do conteúdo em si. São essas questões, essas intenções, que, afinal, ensinam algo a mais.
Não vou adentrar nas referências em outros artigos, onde Olavo sempre puxa os clássicos literários da cultura brasileira para exemplificar, e acrescenta aqui e ali as referências necessárias dos Grandes Livros (ou livros específicos, técnicos) para permitir que o leitor se aprofunde nas ideias. É uma intenção constante, e é ela que revela quem é o personagem. Exemplos disso se vê (além da citação a Gramsci) em:
- https://olavodecarvalho.org/o-milagre-da-solidao-olavo-de-carvalho/
- https://olavodecarvalho.org/aprendendo-a-escrever/
- https://olavodecarvalho.org/dormindo-profundamente/
- https://pt-br.facebook.com/carvalho.olavo/posts/o-brasil-tinha-tudo-para-ser-nada-menos-que-a-vanguarda-do-nacionalismo-mundial-/804052199746856/
Agora voltemos, para fechar a exposição, ao tal exemplo do Leandro Karnal que eu não posso sequer garantir que é dele. A citação indiscriminada, onde os argumentos ficam em 2º plano e que, afinal, só servem para incitar o leitor a pensar "só sei que nada sei", em abstrato, é o tipo de intenção artística máxima que se costuma ver no material cotidiano. Cada qual assume um papel social, e os "filósofos da tríade" assumem o papel de "monges", como a Coen, com a intenção de ensinar a ser um bom menino e não ficar triste ou com inveja com próximo, nem sofrer com a inveja dele, quando muito. Não julgo sequer o conteúdo, que pode até ter seu valor a quem esteja preocupado com essas questões e queira iniciar no assunto (atenção: iniciar), mas, ô raios, a que distância estamos quando os códigos comuns da língua cultural são ou acadêmico (e aí ninguém vai ler), ou "bom-moço", retirando toda a individualidade que tem um Mário de Andrade, um Ariano Suassuna, um Milton Hatoum, um Villa-Lobos, um Olavo de Carvalho, sem falar no abismo entre esses 2 tons comuns e os códigos populares (seja o da baixaria, seja o de memes, seja o de subculturas como a otaku etc.). Isso biparte o homem, que de um lado olha para o chique, e de outro esquece tudo isso e volta a rir das confusões do Casos de Família ou rebolar com o novo brega funk. Isso quando não nega que gosta dessas coisas, ou quando odeia quem admite que gosta. O povo e o erudito se distinguem cada vez mais, e o erudito do pseudo-erudito, e os códigos uns com os outros. E, afinal, não é isso o que aconteceu na Torre de Babel?
Quem, afinal, está disposto a aprender conscientemente todos esses códigos e fazer um esforço de síntese? E quem, afinal, tem paciência para isso quando tudo o que fazemos é entender por contexto, transformando todas as particularidades em ideias mais pobres, mais simples? É como ignorar as pessoas pelo que elas são, e julgá-las indiscriminadamente. É o juízo temerário, é a incompreensão generalizada, é o oposto das palavras "compreender tudo é perdoar tudo" e é, afinal, a decadência do espírito, a confusão das línguas, castigo ao homem que perdeu o amor, isto é, a vontade de compreender o próximo, de compreender suas necessidades mais profundas para poder supri-las.
E é nesta chave, afinal, creio eu, que Olavo tenta trabalhar.
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