Contextualização
Fiz o blog com uma intenção, talvez um pouco apressado, e só depois foi que percebi que boa parte dos temas que seriam relevantes de serem expostos aqui eu não sou capaz de expor. Honestamente, até o momento também não conheço pessoalmente quem esteja capacitado para expô-los com o rigor que uma wiki (decente) exigiria. Mas confiando na intenção do blog, vou tentar mantê-lo na medida do que me for possível. A parte mais interessante dele creio que será os "motivos", mas estou sem o material no momento para montá-los.
Desculpas à parte, ontem consegui assistir ao filme do Mauro Ventura sobre o José Bonifácio, tomando o Bonifácio como um personagem de camada 11 - isto é, um "Napoleão brasileiro", para facilitar. E hoje por acaso acabei me deparando com a seguinte frase, atribuída a um dos grandes intelectuais de peso da minha região, Câmara Cascudo:
Se não é possível atinar para que vivemos, todo o esforço consciente é tentar sentir como vivemos.Triggered. Fui pesquisar a frase. Encontrei-a em 2 sites: em um havia um discurso onde a frase se inseria da seguinte maneira:
Não poderia haver contribuição mais notável para a cultura do nosso país, aquela que foi doada por alguém que o fez pensando da seguinte maneira: “se não nos é possível atinar para que vivemos, todo o esforço consciente é tentar sentir o como viveram e vivem em nós as culturas interdependentes e sucessivas, de que somos portadores, intérpretes, agentes e reagentes no tempo e no espaço.”Certo? Ok. O lugar de onde tirei a frase inicial foi de um jornal online, onde tentam colocar Cascudo como um bom-moço que aprovaria o uso de máscaras para proteger do corona vírus. É no mínimo provável que essa reportagem seja uma tentativa desesperada de proteger a imagem de Cascudo, já totalmente destruída na academia, diante das atuais ameaças do Antifa à demolição da sua estátua. Não que adiante muito salvar a estátua quando já se conhece o homem só pelo seu lado negativo.
Que coisa linda: “sentir como viveram e vivem, EM NÓS, as culturas interdependentes e sucessivas de que somos portadores.”
Entrando no Tema
A questão que se tira daí são duas: primeiro, Câmara Cascudo é tomado como o maior intelectual do estado do RN. Segundo, não só isso, como a posição dele, o "não sabemos para que vivemos, mas podemos conhecer como vivemos" é tomada também como o ápice da consciência e capacidade humanas. E isso na verdade é sintoma de um problema.Preciso enfatizar que existe uma "regra" nas 12 camadas que consiste em: não se pode compreender as camadas que estejam acima da sua. Ou seja, um adolescente não entende as preocupações do pai (e por isso não obedece nem se preocupa), um adulto mediano não entende as preocupações de um poeta tão preocupado em procurar a palavra precisa para alguma coisa, o poeta não entende as preocupações de um grande e sério líder de estado, e o líder, por sua vez, não entende as preocupações de um profeta. Digo isso porque eu particularmente me considero "camada 4", ou, no melhor dos casos, "camada 6". Então minha análise é invariavelmente incompleta e burra, mas por imaginação o próprio texto nos abre a possibilidade de tentar conceber como são as outras camadas - é com essa técnica que tentarei descrevê-las.
Vi alguns vídeos refutando a teoria, e são verdadeiramente uma palhaçada. Primeiro porque um texto filosófico, no mínimo, não é algo para dizer se está certo ou errado - ele é uma chamada para meditar sobre certas questões que são abertas a partir dele. No mínimo essas questões são mais importantes do que detalhar. E, aliás, são delas que tratarei aqui. Um segundo momento é averiguar a relação do texto filosófico com as referências que aponta e, afinal, com a questão, ou o status quaestionis. O vídeo, do canal Psicamente, é basicamente um deboche ateu acompanhado de um conceito de personalidade que não é o mesmo do usado no texto - e, portanto, não estão sequer falando da mesma coisa, mas o autor do vídeo não atinou nem para isso.
Para simplificar, e também por burrice e preguiça, eu vou usar personalidade como "o potencial de auto-consciência" e camada como "o estágio em que estão as preocupações principais da personalidade". Vou tentar abordar o tema sem o cristianismo. É que quando se chega na camada 12 "o indivíduo perante Deus", o pessoal acostumado à educação laica fica bravinho e não entende nada.
As 12 camadas, só que não (exposição incompleta)
Como não tenho acesso aos textos nem aos estudos, só a minha vida e à imaginação, eu não posso falar das 3 primeiras camadas. Tudo o que sei delas é que dizem respeito à fase pré-nascimento até mais ou menos a infância. E que todos passamos por essas 3 camadas, com exceção de quem possa ter nascido com deficiências sérias e não adquira sequer a linguagem, por exemplo.Meu foco será nas camadas 4 à 12, que são acessíveis ou por experiência ou por imaginação, visto que estamos sempre lidando, na cultura, com adolescentes ou adultos. Então eu remoto a frase adaptada do Cascudo - "se não é possível atinar para que vivemos, todo o esforço consciente é tentar sentir como vivemos" - a fim de abrir certas questões que o texto do Olavo permite conceber.
1- Costumamos usar a palavra "intelectual" para nos referir a tipos muito distintos. Será que não há "tipos diferentes" de intelectuais?
2- Idem, de líderes?
3- O entendimento de um texto depende da posição em que estamos na vida?
4- O que movia os grandes líderes? E os profetas?
5- Por que Raskolnikov (Crime e Castigo, de Dostoiévsk) não conseguiu "ser um Napoleão", mas Napoleão conseguiu?
6- É possível equacionar e classificar os autores de psicologia/psicanálise e atribuir a eles um foco específico?
As camadas 4 em diante são mais fáceis de se enxergar, em certa medida. A 4 é a da criança que precisa ser amada, chamar a atenção dos pais etc.. Não sei se todos tiveram a experiência de ter que pedir aos pais até para ir ao banheiro, por precisar da permissão, do aval da autoridade. Não vou me alongar muito, mas é importante usar do texto para abrir a atenção para observar a criança nesse estágio.
A camada 5 é quando o jovem já não quer mais o aval dos pais, e, ao contrário, está perante outra autoridade, a do grupo, ou a de si mesmo. É nessa etapa que ele quer "ser diferente", achar seu espaço, e então testa seus poderes no mundo. É os rapazes na festa competindo entre si para ver quem pega mais mulheres, ou a mais bonita, e vice-versa, as mulheres tentando ver quem fica com o cara mais legal, mais forte, mais alto etc.. É o sinônimo da juventude, da "rebeldia" - e que, aliás, pode continuar ao longo da vida, ainda que misturado com outras preocupações que a vida vai impondo, no caso, por exemplo, do rapaz que ainda esteja em fase de rebeldia, mas tenha engravidado uma moça e acabe sendo forçado a construir uma família. Novamente, há muito o que se observar a partir disso, para medir, comparar, pensar no assunto.
A camada 6 é quando essa competição já não importa, e o "ser diferente" vai perdendo espaço. É na hora em que é preciso pensar em ser útil, é quando começamos a nos preocupar com nossos pais, que trabalham muito, que nós somos inúteis por não ajudar nas contas etc. É aqui que entra de forma consciente a vontade de ter emprego, de fazer direitinho as coisas.
Sobre a camada 7: no processo de tomar posse de uma vida que saia do grupo de referência para entrar propriamente na sociedade, entramos no estágio de ter que assumir conscientemente "personas". É uma das grandes questões que vejo repetidas o tempo todo, são o ápice da consciência humana para muita gente. "Eu não sei quem sou porque uma hora eu tenho que ser de um jeito, outra hora de outro, e assim somos nós, sempre usando máscaras, incapazes de nos conhecermos realmente". Essas questões estão ligadas à camada 7. Eu particularmente pude imaginar esses temas por ser muito curioso e ter me metido em muitos grupos diferentes, e daí vi que em cada grupo entrava só uma parte de mim. Exemplo: um lado meu é otaku, então há um conjunto de temas e piadas que eu posso falar, e outras que seriam inapropriadas para meus amigos otakus. De outro lado olavette, idem. De outro lado universitário, idem. De outro lado participante de uma família, idem. Vizinhos, idem. E assim por diante. Esses "recortes" a gente faz o tempo todo, mas na camada 7 haveria uma tomada de consciência progressiva, que culmina nessa impressão poética de que só há máscaras, só há papeis sociais, não há "O Homem", e, portanto, o homem é uma máquina que serve ao mundo. Another brick in the wall. E nada mais. É, por assim dizer, a morte do adolescente que queria ser diferente, e, me parece, uma das razões de não querermos jamais amadurecer. É o medo de "virar igual aos outros" que nos impede de buscar compreender as normas sociais, dos grupos etc., e tomar posse da sociedade.
Antes de entrar na camada 8, é preciso enfatizar: "Ah mas você disse que estava na camada 4!" Eu falo desses temas não porque eu os seja, mas porque de tão curioso, observo tudo, guardo o que vi, comparo, meço, e não tento julgar "para baixo" quem eu sei que está acima de mim. Essa é minha única garantia.
Pois bem: a camada 4 tem uma exceção, que é ou quando a pessoa não recebeu amor suficiente da mãe ao longo da puerícia/infância, ou quando o sujeito "trava" por medo ou timidez (dá no mesmo) e evita testar o seu poder. Dito de outro modo: ser exibido, ser bobão e ficar disputando com outros é parte do processo de amadurecimento. Eu, que sempre evitei isso por uma "suposta humildade" (mentira) acabei por não passar por um amadurecimento convencional. Teve seus prós e contras, na minha situação particular, mas em geral o resultado não é bom. Eu creio que seja a situação que Olavo associou com o poema "Par delicatesse j'ai perdu ma vie" (por delicadeza perdi minha vida), verso do poeta francês Arthur Rimbaud. Isso acontece muito na situação brasileira, e é uma das coisas que o Ítalo Marsili, por exemplo, mais tenta combater. É porque nessas situações o sujeito permanece com uma carência de atenção o resto da vida, e isso atrapalha todo o resto da sua existência: o trabalho, a família etc., se é que ele consiga isso. Em geral, é mais levado pelas circunstâncias externas e, no máximo, pelas internas (o desejo sexual, a curiosidade, no melhor dos casos), e fica "à deriva".
Deixo essas ênfase para melhor mostrar, por exemplo, as questões colocadas no começo. "Será que existe um intelectual que tenha grau acadêmico, mas seja camada 4? E 6? Qual seria a diferença?" Posso mostrar um pouco depois.
Dito isso, agora continuemos: é da Camada 8 em diante que o jogo fica interessante, mas antes de entrar nela, gostaria de deixar umas citações para apoiar no processo.
Cultura não é só aquisição de conhecimento, é a formação de uma personalidade ao mesmo tempo arraigada na realidade histórico-social concreta e capaz de transcendê-la intelectualmente. (A citação, que acho maravilhosa, é de 2015).
Eu gosto de apontar essas citações para tentar mostrar que Olavo fala sempre da mesma coisa, mas, como usa termos diferentes, isso passa batido muitas vezes. Do que ele está falando na citação acima? Da busca constante de se chegar à camada 11, no mínimo.
O ser humano foi feito para se transcender. Tem que deixar sua vida queimar como um pavio, porque é isso que vai iluminar o ambiente. (...) O ser humano existe para isso. É o único bicho que pode fazer isso. Um gato não pode ser superior a um gato, ele nunca vai superar a sua gaticidade. Alguém tem que começar dando o exemplo (do filme do Bonifácio, considerado camada 11).
O que chamamos ascese espiritual, até onde entendo, é como o processo que ocorre com Raskolnikov em Crime e Castigo, ou no filme Aurora, de 1927, de que Olavo tem um ensaio maravilhoso presente no livro "A dialética simbólica: estudos reunidos". É um passo na tomada de consciência do "quem eu sou verdadeiramente", a tomada de consciência da minha relação com a minha história, o meu meio e, portanto, as ações que devo tomar - que são mais adequadas. Dito de outro modo, é uma tomada progressiva de posse de uma consciência do bem e do mal. É no mínimo nesse sentido que se usa a palavra "Deus", é porque o processo da camada 8 em diante implica também a tomada de posse de uma noção ao mesmo tempo objetiva e pessoal de Bem e Mal. Antes disso, é de fato apenas "convenção social", e, pelos trabalhos universitários que se vê atualmente, se se fala tanto em convenções sociais, é precisamente porque o máximo a que conseguimos chegar em geral é a 7ª camada, é a da máscara. E, afinal, se tudo é convenção, não há Bem e Mal objetivo. Ora, mas ainda há 5 camadas acima a percorrer.
Faz parte da realidade da vida você não saber quais são os elementos que determinaram seu sentido. Mas também faz parte da vida você poder compreender o sentido do que está acontecendo. Eu não sei quem foi que fez chover, nem com qual intenção, eu sei que para a ordem constitutiva da minha vida, neste momento, a chuva tem um sentido muito nítido.
O sentido, o que é? É a obrigatoriedade moral de uma ação, que por sua vez faça sentido dentro do caminhar da minha vida e dentro da minha própria identidade. Sendo eu quem sou, vivendo do jeito que vivo, tenho a obrigação de fazer isto assim e assado, pois só assim minha vida fará sentido. Viktor Frankl daria pulos de entusiasmo se visse esse filme. (Do ensaio sobre Aurora, 1999. É preciso notar que a trazida à tona na cultura brasileira o nome de Viktor Frankl é perfeitamente intencional). [negrito meu].
Por exemplo, você monta um armazém. Depois de uma crise econômica na Zâmbia, que muda o comércio internacional de um produto, seu armazém afunda. Você não precisa conhecer essa crise econômica toda, não precisa saber onde ela começou e não precisa saber o tamanho dela. Você sabe apenas que seu armazém afundou. Agora, eu lhe pergunto: você quer ver o tamanho do inimigo que liquidou seu armazém? Quer ver o tamanho do elefante que pisou em cima de você ou não? Quer conhecer realmente o que determina sua vida?Note que não estamos falando de causas sobrenaturais, estamos falando de causas socioeconômicas. Nesse momento, a maior parte das pessoas baixa os olhos como o personagem da "Máquina do Mundo" [Drummond]. Não quer ver, e não querendo, volta à condição de animalzinho - o bichinho vivente cuja vida não tem sentido, cuja vida não precisa ter sentido, e que só espera morrer o mais rápido possível. (pp.299-300 do mesmo ensaio).Todas essas citações estão falando na mesma coisa. Volte à palavra "identidade", da penúltima citação. Até o momento o máximo de identidade que possuímos é a civil (camada 7) que recebemos desde o instante em que somos registrados em cartório e, com o RG em mãos, somos considerados cidadãos, ou seja, membros do todo que é a sociedade. Mas existe uma outra espécie de identidade, que é a que vem quando nos perguntamos "mas, afinal, quem eu sou?"
É evidente que são poucos no nosso meio que chegam aí. Porque é nesse estágio que as máscaras que fizemos caem e, de tanto trocar, relembramos que temos um rosto. Um rosto cheio de cicatrizes, marcas, com certa cor de olhos, um nariz mais fino, mais longo, achatado etc.. E aí entra a percepção de que há um "eu". Isto é, eu faço certos recortes para estar num grupo, e outros para estar em outro, mas há um todo, que se não está presente para as pessoas, está para mim, porque eu sei que sou mais do que aquilo que apresento ao grupo otaku, ao grupo olavette, à minha família, aos meus vizinhos. E, ao contrário do adolescente da 5ª camada que quer ser diferente, original, quer ser "sempre ele mesmo" (como também na 6ª camada, me parece), aqui há o descanso perante o público, mas o desassossego para buscar entender a própria história. "Quem eu fui, o que eu fiz, o que vivi, o que essas coisas falam de mim, como me fizeram ser quem sou" etc.. Essa é a camada 8. Claro que para entender "quem eu sou" eu vou ter que mexer com o meu meio, presente e passado, e tentar achar as conexões entre ambos. Olavo afirma que aqui é o adulto maduro médio em condições normais.
A camada 9 em diante diz respeito a talentos. Pelo que entendo é a descoberta e desenvolvimento a partir da personalidade intelectual. É aqui que entra, pelo que imagino, a preocupação com um "objeto". De repente você vê na sua história um interesse que se manteve relativamente constante, mudando aqui e ali as maneiras de expressão, e você decide apostar sua vida nessa coisa. É aqui que surgem os grandes escritores, os grandes músicos (Olavo usa como exemplo Beethoven), e, por assim dizer, uma "segunda identidade". Como assim?
Acho bom como exemplo falar de um ator. Harry Potter, o Homem de Ferro, Neo do Matrix etc., não são Daniel Radcliffe, Robert Downey Jr., Keanu Reeves, mas a gente forçosamente associa as duas identidades, em parte porque ninguém conheceu a pessoa real diretamente, mas só através do filme em que representaram seus papéis. Do mesmo modo ocorre com um Ariano Suassuna, que assumidamente "brincava de ator" nas palestras, ou Mário de Andrade. Em suma, como eu mostrei no post sobre o estilo literário de Olavo, não há como negar que haja a criação intencional de um personagem. E a fonte é precisamente essa busca da primeira identidade, a física, na tentativa de conhecer um objeto. A diferença entre o ator comum e o personagem de 9ª camada é que este tem intenção consciente (personalidade), enquanto que o ator é associado com a imagem do personagem por obrigatoriedade das circunstâncias do seu trabalho.
É nesta etapa que acredito estar Câmara Cascudo. Nesta etapa não existe "sentido do mundo", mas existe sentido numa curiosidade voraz por conhecer um objeto, a ponto de que conhecer isto seja mais importante do que sua vida pessoal. Cascudo dedicou sua vida a conhecer o "como vive" do povo. Viveu isso, estava em contato com pescadores, com gente comum, com rituais de todos os tipos, e descreveu isso extensivamente. É pela incapacidade de compreender a intenção acima do homem, e, pior, de compreender a utilidade da obra, que surgem as situações que vemos hoje. Não havendo quem mostre o valor (precisaria alguém igual ou acima de Cascudo), sua obra se banaliza, sua figura se desmonta, e "o diabo atenta". É também o que ocorre com Olavo, apesar de no caso dele a coisa estar em nível muito pior porque sua camada também é maior.
Descoberto o talento, buscado seu aprofundamento, se aprofundamos também nas condições do meio, entramos consequentemente na camada 10, que eu entendo como a camada em que se adquire um senso de bem do mal mais elevado. Até a camada 9 "Bem" é fazer o seu trabalho direito, com exceção, entre a camada 8 e 9, que na camada 9 o "seu trabalho" não é mais uma profissão, e sim esse esforço de dedicar a vida a entender esse objeto. Ora, mas esse objeto tem consequências na vida da sociedade. Por exemplo, se estudo literatura, então "para que serve literatura?", "quais os efeitos da literatura no meio?", "quais os efeitos de certa literatura, e de outra?", "existe literatura que faça mal às pessoas? E existe a que faça mais bem?". Um grande poeta não precisa responder a nada disso, basta conhecer seu ofício com perfeição. Do mesmo modo, na obra de Cascudo não vi, até o momento, qualquer indicativo dessa intenção. Camada 9 pode ser também um grande programador, um grande músico, enfim, qualquer pessoa que dedique interesse o bastante a um objeto que lhe atrai não por ser sua profissão, mas porque sua curiosidade te obriga a pensar nele, a sonhar com ele. É sua própria existência que está ali.
Um exemplo popular, que, acredito eu, não é propriamente 9ª camada, mas é claramente a personalidade intelectual, a "personagem", é o cantador nordestino. O cantador nordestino, mesmo analfabeto, surge, pelos casos que vi e ouvi falar, de uma "inspiração". Ele não pode ser feito "de fora pra dentro", não se ensina isso. É uma vida devotada ao cantar, que é passado "quase por mágica" quando uma criança vê um outro cantador e aquilo desperta dentro dele o desejo profundo de aprender aquilo. Não acredito que seja 9ª camada mesmo o cantador bem desenvolvido porque não há a aquisição ativa, de um lado, dos aspectos da vida (tomar posse de si, do meio, do trabalho etc.), e, de outro lado, da variedade da habilidade. Muito menos haveria aqui a subida à camada 10.
A camada 10, portanto, é quando dessa habilidade intelectual, bem desenvolvida, se busca entender quais seriam as melhores escolhas para o meio.
A camada 11, por sua vez, é quando, daí, se adquire também a responsabilidade de liderança nesse quesito. Aqui, suas escolhas são tomadas perante o desenvolvimento da história. para atingir a camada 10, obviamente será preciso conhecer o seu meio além do que foi necessário na camada 8 para compreender sua história, e, aprofundando essa "relação" entre o eu, a história do eu, o meio e a história do meio, o sujeito toma posse da capacidade de tomar decisões que ele sabe, em certa medida, claro, quais efeitos gerará para o futuro. Ainda que não tome uma posição de poder (seja na literatura, na arquitetura, no governo de um país), que, se tomada, mudaria o curso comum dos eventos muito além da sua área, ele sabe do poder das suas decisões, e, mais que isso, as pessoas em volta também o percebem. A ascensão nas camadas gera uma "autoridade natural", aparentemente inevitável.
A isso se pode tentar objetar: "ah mas Mário de Andrade elaborou a Semana de Arte Moderna, e isso mudou o curso do Brasil, que antes era Parnasiano." Calma. A Semana de Arte Moderna foi apenas uma aplicação local do modernismo, uma tendência que já estava ocorrendo fora do Brasil, e que, aliás, muito do que foi feito aqui foi inspirado em artistas de lá, pelo contato direto até. Camada 11 seria a busca por quem gerou as condições históricas para ocorrer esse fenômeno - eu mesmo não sei. Camada 10 ou 9 quem criou o movimento inicialmente, e assim sucessivamente, chegando até o poeta comum de hoje que copia o estilo de 1922 e vai pra eventos exibir sua poesia porque assim se sente satisfeito/cheio de si/gostosão/pegador (camada 5).
Então, concluindo, a camada 11 seria a auto-consciência perfeitamente consciente da relação do meio com a história e de si mesmo com a história. Mas então, o que vem depois disso? O que pode vir? O que está acima de Napoleão ou de Bonifácio?
Já falamos sobre a conquista da identidade pessoal, de uma habilidade, da relação com a habilidade e o que faz "Bem" ao meio, e, afinal, da posição desse Bem perante a História. A última etapa da relação "Bem e Mal" a que o "homem comum" pode chegar é a relação entre a sua posição história e a "História Ideal". Essa é a 12ª Camada. Adão e Eva teriam que ser "camada 12" para não comerem do fruto proibido, por exemplo. É, no mínimo, nesse sentido que se fala da relação do Homem com Deus.
Fala-se muito na literatura sobre ela ser "universal", mas não se medita sobre o significado disso. Com o pouco que sei, eu diria que universal significa que há constantes do Homem. Há um Bem e um Mal objetivos, e que podem ser conhecidos. A 12ª camada implica estar na posição de saber, além de qual o Bem que eu posso fazer com a minha habilidade perante o curso da história, qual o Bem que eu posso fazer perante o "Homem", em sentido universal, esse mesmo Homem que se busca conhecer pela literatura (ou fora dela).
Eu imagino que a 12ª camada seria o momento em que se entende para além da História, a relação entre as Tradições Espirituais (a Bíblia, o Torá, o Alcorão, e mesmo os outros livros fundantes de civilizações) e a civilização. E, quanto mais se avança, melhor se concebe não só essa relação, como também a relação entre as tradições umas com as outras. É só aqui que se pode falar de "Deus" com plena consciência. Antes disso, Deus é uma palavra que mascara outra coisa: (em ordem crescente de camadas, mas não na sequência precisa) um ódio à sua família evangélica, um conceito incompreensível, o sentimento legado por uma tradição, o Bem, a Fonte do Bem (ou Sumo Bem).
Se prestarem atenção, as 12 camadas é uma linha progressiva entre a descoberta da sensibilidade pessoal, e seu processo de ascensão e "apoteose", no sentido de tornar a percepção cada vez mais objetiva. Sai da necessidade de ser amado (que é subjetiva) para a necessidade de ser forte, e até aqui está sempre no eu presente, nos desejos e impulsos presentes. De repente salta-se para a necessidade de ser útil (já sai um pouco desse "eu presente"), para a necessidade de se encaixar nos diversos meios (e aqui entra a sociedade presente), para a necessidade de compreender esse eu histórico e sua relação com a sociedade (agora saltou dos estados do eu presente para os estados do eu histórico). De repente salta-se novamente para uma coisa fora do eu (mas que existe dentro do eu pela curiosidade), para sua relação com a sociedade, para sua relação com a história e, por fim, para sua relação com a História.
Em nenhum momento é uma "negação do eu", mas é a mudança do foco, dos estados emocionais presentes para uma morada mais "permanente", que se encontra ao mesmo tempo no interior do "eu" e fora dele.
Então, quando vem um vídeo como o do Psicamente analisar as 12 camadas, é óbvio que ele não fala pensando em todo esse processo de evolução. Ele apenas pegou o texto, viu coisas esquisitas e tentou brincar com isso. Isso porque é provável, até pela idade, que ele não chegue sequer ao posto do Câmara Cascudo, que passou a vida conhecendo algo, mas que não via "sentido" na existência para além desse objeto. Se ele chegou a isso, que falar dos que estão em torno de sua obra e tomam ele como o ápice da consciência humana, implicando, portanto, não estarem sequer próximos desse patamar de auto-consciência?
Pior, como seria possível que essas pessoas defendessem o "Cascudo real" (camada 9), se sequer chegaram ao seu nível de compreensão do mundo? Mas quanto menos pessoas capacitadas a isso, mais fácil se torna a Destruição. Uma boa fofoca é suficiente para envenenar a imagem já desgastada pelo tempo e incendiar em protestos que destruirão apenas o símbolo (a estátua) de algo que já foi na verdade destruído há muito tempo.
Há, evidentemente, muito mais que se poderia ser tratado do assunto, mas acho que esse texto é o bastante para iniciar um pouco o tema.
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